De volta à paisagem carioca, os bondes avançam rumo ao futuro da cidade. Nos áureos tempos, quando ainda predominavam nas ruas e eram o principal meio de transporte, seus trilhos se espalhavam por 448 quilômetros (bem mais que os atuais 270 usados por trens e 42 por onde corre o metrô). Em 1950, chegaram a transportar 644 milhões de passageiros, segundo um anuário da Light, que administrou o serviço de 1907 a 1965. No entanto, com exceção de dois bondes que ainda trafegam timidamente por Santa Teresa, o sistema foi aposentado em 1967, quando a última linha no Alto da Boa Vista parou de circular. Considerados obsoletos na época, foram sendo gradualmente substituídos por lotações e ônibus (incluindo os elétricos, apelidados de chifrudos). No próximo domingo, no entanto, com o início da operação do veículo leve sobre trilhos (VLT), um novo capítulo na história dos transportes do Rio começa a ser escrito.
Para especialistas, será a hora de mostrar como os bondes, antes vistos como ultrapassados, podem ser modernos, confortáveis e ambientalmente sustentáveis.
— Quando os bondes foram tirados das ruas, havia duas desculpas. Uma delas era a instabilidade de energia. Os bondes paravam e atravancavam as ruas, porque ficavam todos em fila. Outra foi a influência do modelo rodoviarista. Aconteceu naquele momento um erro, uma falta de visão de política de transporte e de continuidade de planejamento. Talvez o Brasil tenha sido o único país que praticamente extinguiu esse meio de transporte. As linhas não precisavam ter acabado. Os trajetos poderiam ter sido modernizados. O VLT nada mais é do que o bonde moderno, com mais conforto, além de tecnologia, operação, segurança e sinalização bem mais avançadas — diz Ronaldo Balassiano, professor de engenharia de transportes da Coppe/UFRJ.
SISTEMA AJUDOU A CONSOLIDAR BAIRROS
Por onde passaram, os bondes elétricos abriram caminhos, interligaram bairros, fizeram história. Suas linhas foram as principais responsáveis pela consolidação de bairros como Jardim Botânico, Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon e Vila Isabel, permitindo o deslocamento de populações do velho e abarrotado Centro.
A primeira linha de tração elétrica foi inaugurada em 8 de outubro de 1892. O bonde, sob os aplausos do povo, saiu da Rua do Passeio e seguiu até a Rua Dois de Dezembro, no Flamengo. Uma semana depois, o escritor Machado de Assis relatou suas impressões: “Admirei a marcha serena do bonde, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga”. A partir da década de 50, no entanto, os trilhos foram sendo cobertos pelo asfalto.
Segundo Roberto Schaeffer, professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ, o Rio segue uma tendência mundial. Ele diz que, no futuro, os corredores expressos dos BRTs poderão dar lugar ao VLT.
— Em termos de transporte público, é o que há de mais moderno. Tem a vantagem de ser movido por energia elétrica, sendo bem superior aos ônibus do ponto de vista ambiental. Não polui nada — afirma Schaeffer, ressaltando a necessidade de uma orientação maior à população. — Como ele é muito silencioso, o risco de atropelamento é alto. Acho que poderemos ter muitos acidentes no começo. As pessoas vão precisar se acostumar.
O engenheiro Willian de Aquino, coordenador regional da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), cita o título do filme “De volta para o futuro” ao comentar a retomada do bonde. Segundo ele, cada VLT equivale a 280 carros ou sete ônibus a menos nas ruas.
— É o início de uma grande mudança na mobilidade. O grande legado das Olimpíadas — comemora Aquino.
Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ), o arquiteto e urbanista Pedro da Luz afirma que os bondes serão mais um atrativo para a expansão imobiliária no Centro e no Porto.
— Eles poderão consolidar uma área da cidade que tem boa infraestrutura. A prefeitura poderia aproveitar essa mudança para incentivar a presença de moradias na região, que é algo ainda tímido.
Pesquisador ferroviário, o engenheiro Helio Suêvo Rodriguez lamentou o fim dos bondes, mas agora comemora a retomada do meio de transporte.
— Será uma mudança radical na mobilidade urbana. As pessoas terão que se acostumar, não ir mais de carro para o Centro. O tempo se encarregará de ajustar as coisas. O bonde foi um dos principais sistemas de transporte do Rio. Praticamente todos os bairros cariocas eram ligados por ele. Eu ia de bonde para a escola quando era criança. Ele foi abandonado por uma questão de governo e até de pressão da entrada automobilística no país.
Em 1898, Rui Barbosa chamou o Rio de “pátria adotiva dos bondes”. “O bonde foi até certo ponto a salvação da cidade. Foi o grande instrumento, o agente incomparável do seu progresso material. Foi ele que dilatou a zona urbana, que arejou a cidade, desaglomerando a população, que tornou possível a moradia fora da região central, onde até então todos nos apinhávamos sem luz, sem ar, sem espaço. (…) O Rio é realmente a pátria adotiva do bonde, a sua pátria de eleição”, declarou.
Essa vocação perdida no tempo poderá, agora, ser retomada.
COMPORTAMENTO DE PEDESTRES PREOCUPA CONSÓRCIO E SECRETÁRIO
O VLT começará a circular no próximo domingo, entre a Praça Mauá e o Aeroporto Santos Dumont. Do meio-dia às 15h, dois trens farão o percurso em intervalos de meia hora. Os passageiros poderão viajar de graça até 30 de junho, mas, a partir de 1º de julho, terão de pagar tarifa de R$ 3,80 (a mesma dos ônibus). O sistema de validação dos tíquetes (Bilhete Único e cartão VLT) deverá ser feito voluntariamente, já que não haverá cobradores. Não será possível fazer o pagamento em dinheiro dentro do VLT, somente em máquinas automáticas localizadas nas estações.
Os horários de funcionamento e o trajeto até a Rodoviária Novo Rio serão ampliados a cada semana, em oito etapas. De acordo com o planejamento da prefeitura, em agosto, durante os Jogos Olímpicos, a primeira linha funcionará das 6h à meia-noite, inclusive nos fins de semana, com oito VLTs, que circularão em intervalos de 15 minutos.
Em 2017, quando o sistema estiver operando a plena capacidade, com três linhas, 32 trens e 32 estações ao longo de 28 quilômetros de trilhos, o VLT terá capacidade de transportar 300 mil passageiros/dia. Como a circulação será feita em áreas com grande movimento de pedestres, como a Praça Mauá e as avenidas Rio Branco e Rodrigues Alves, a segurança é uma das preocupações do consórcio responsável pela operação, formado por empresas que também administram o metrô, os trens, as barcas e os ônibus.
— Durante a fase de testes, percebemos que o comportamento da população muita vezes não foi aquele que recomendamos. Vimos pessoas parando em frente aos bondes para tirar foto, o que representa um risco — comenta o secretário municipal de Transportes, Rafael Picciani.
Com o novo modal, o Rio será a segunda cidade fora da Europa a usar a tecnologia Alimentação Elétrica pelo Solo (APS), que dispensa totalmente cabos aéreos. Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, foi a primeira utilizar esse modelo, em novembro de 2014, com uma rede menor que a futura malha carioca. Lá, são transportados, em média, dez mil passageiros por dia, ao longo de 11 quilômetros de trilhos, em um sistema que conta com 11 estações e 11 trens.
BOM DESEMPENHO EM DUBAI
Por e-mail, o diretor-geral da Autoridade de Estradas e Transportes de Dubai (RTA, na sigla em ingês), Mattar Al Tayer, disse que um estudo mostrou que a densidade populacional na região onde o VLT foi implementado será, em alguns anos, bem maior que a média na cidade. Para evitar congestionamentos no futuro, foi preciso, segundo ele, construir uma rede de transportes integrada — o VLT de Dubai tem conexões com o metrô e o monotrilho.
— Durante o primeiro ano de operação, o Dubai Tram alcançou índices extremamente elevados de desempenho. O indicador de pontualidade dos trens alcançou 96,4%. Já a satisfação dos passageiros ficou em 98%. O Dubai Tram foi implementado para melhorar, principalmente, a mobilidade em Dubai, atendendo a áreas turísticas e de grande importância econômica. Também contribuiu para a formação de um sistema de transporte de massa integrado, com um modelo suave e altamente eficiente. Contribuiu ainda para melhorar nossa economia, para reduzir emissões de carbono, conservar o meio ambiente e melhorar a qualidade de vida dos moradores — disse Al Tayer.
A segurança também tem sido prioridade em Dubai. Ainda na fase de testes e um mês após a inauguração, houve acidentes, com carros se chocando contra os trens. Alguns cruzamentos chegaram a ser fechados. Um regulamento estabeleceu ainda multas específicas para quem cometer infrações ou acidentes. O motorista que avançar o sinal e provocar acidentes com feridos, por exemplo, poderá ser cobrada uma multa de R$ 4.800 a R$ 14.400, além da perda de carteira de no mínimo 30 dias e, no máximo, seis meses. Jogar lixo nos trilhos rende uma multa de R$ 480. Já quem cruzar os trilhos em áreas proibidas, terá que desembolsar R$ 960. De acordo com Al Tayer, cerca de 230 policiais fazem o policiamento pelo VLT e 800 câmeras dentro e fora dos trens ajudam no monitoramento.