Bernardo Figueiredo* e Lucas Navarro Prado**
Ao tempo em que o governo federal submete ao crivo da sociedade um projeto ferroviário para o país, trazemos para consideração um conjunto de reflexões sobre os objetivos a serem alcançados e as ações necessárias para isto.
O Plano Nacional de Logística, chamado PNL 35 – lançado em 2021 pelo Governo Federal – é a base dos planos setoriais, colocados agora em consulta pública. Embora os algoritmos utilizados para hierarquização das propostas de investimentos tenham sido revistos pelo atual governo, os planos setoriais existentes trazem os problemas técnicos e vícios do PNL de três anos atrás.
O PNL parte de uma proposta de intervenções construída sem respaldo num diagnóstico da situação atual do sistema de transportes, onde seriam identificados os entraves e as possíveis soluções dos gargalos que comprometem a competitividade da logística do país.
Por isso, é fundamental rever o PNL, refletindo, de fato, sobre quais são as questões críticas e prioritárias do transporte. Isso pode ser percebido pela simples observação do que efetivamente ocorre no mercado de transportes e como são apresentadas soluções para estas questões nos instrumentos de planejamento vigentes e/ou que passaram recentemente por consulta pública, com o caso em tela.
O PSTF (Plano Setorial de Transporte Ferroviário), submetido recentemente a consulta pública, propõe e prioriza o investimento concentrado na construção de corredores ferroviários de exportação de granéis minerais e agrícolas, inclusive de dois novos corredores ferroviários ligando o norte do Mato Grosso à bacia amazônica e ao litoral norte e leste.
É possível supor que estes investimentos pretendem promover uma concorrência entre corredores ferroviários como forma de solucionar a assimetria que existe nas relações entre embarcadores e concessionárias ferroviárias (que exercem o monopólio natural sobre a ferrovia concedida), o que cria um estressado ambiente de desconfiança nas relações comerciais.
Cabem aqui duas reflexões sobre esta proposta de investimentos.
A primeira é sobre a possibilidade de reduzir a assimetria de mercado, tornando efetivo o marco regulatório existente. Já existe legislação e regulação que garante a ampliação da linha existente e o acesso de trens de terceiros para prestação de serviços, inclusive operadores independentes, sem a necessidade de investimento público.
O que falta é dar efetividade à regulação, criando instrumentos para colocar em prática e fiscalizar o atendimento do operador na disponibilização da infraestrutura e na prestação dos serviços.
A segunda é sobre a ineficiência dos investimentos em corredores de exportação concorrentes gerada pela perda de escala no transporte, dada a divisão do mercado entre vários operadores.
Os riscos associados à disputa pelo mercado, especialmente quando se trata de concorrência com corredores já existentes, pode exigir mais aporte de recursos públicos na medida em que aumenta a percepção de risco pela iniciativa privada e comprometer a realização de investimentos privados em andamento.
A terceira reflexão é sobre a falta de prioridade para as intervenções voltadas ao atendimento dos mercados de carga geral e de granéis líquidos – sendo a carga geral totalmente dependente do transporte rodoviário. Juntos, os dois mercados representam 50% da demanda de transportes do país.
Compare-se com a concentração de prioridades em intervenções voltadas para o atendimento ao mercado de granéis agrícola, que representa menos de 15% da movimentação total de cargas no país e já dispõe de soluções ferroviárias que podem ser capazes de atender suas necessidades, sem que sejam necessários investimentos públicos.
Não custa lembrar a última crise do transporte rodoviário, quando a paralisação promovida pelos caminhoneiros, em 2018, provocou grave desabastecimento de bens de consumo, combustíveis e insumos industriais.
Por outro lado, não houve comprometimento relevante do transporte de granéis minerais e agrícolas, que dispõem de infraestrutura e serviços ferroviários para parcela importante da sua demanda. Registre-se, aliás, que granéis minerais e agrícolas representam mais de 90% do transporte ferroviário brasileiro.
A paralisação de 2018 teve consequências drásticas e, nesse contexto, o planejamento de transportes passou a ter como uma de suas diretrizes estratégicas aumentar a participação da ferrovia na matriz de transporte.
No entanto, os corredores ferroviários voltados para o abastecimento interno se encontram inacabados ou abandonados e, a rigor, não são trechos elegíveis no PSTF colocado em consulta pública.
Um dos problemas mais graves da logística nacional, por óbvio, é a completa dependência do transporte rodoviário, a que são submetidos os setores estratégicos para o abastecimento interno de produtos e insumos.
Um olhar atento aos mapas de carregamento mostra a necessidade de incorporarmos ao sistema ferroviário corredores que liguem as regiões Nordeste e Sul aos modernos corredores ferroviários das regiões Sudeste e Centro Oeste.
Mas não estão contempladas no PSTF intervenções para modernização das ferrovias que ligam o Nordeste e o Sul ao Sudeste, principal eixo de abastecimento de produtos e insumos do país.
Esses trechos estão abandonados porque têm um padrão de bitola e desempenho incompatíveis com os padrões físicos e operacionais das ferrovias que atendem aos polos econômicos de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Além disso, a Ferrovia Norte-Sul, que liga a região Sudeste ao Norte, não chega a Belém (PA), polo logístico da região, para onde convergem as cargas originadas e destinadas à Zona Franca de Manaus (AM) e outros polos da bacia amazônica.
Isso porque falta um trecho de 500km de ferrovia entre Açailândia (MA) e Barcarena (PA), tratado no PSTF no cenário dos empreendimentos como projeto em concepção.
Essas ferrovias deveriam estar nas mais altas prioridades porque são necessárias para reduzir os riscos e os custos logísticos do abastecimento do mercado interno, perigosamente dependente do transporte rodoviário.
Por isso tudo, este manifesto tem como principal objetivo jogar luz sobre os problemas da logística ferroviária e torcer para que o programa a ser lançado pelo governo federal traga uma nova visão sobre as prioridades de investimento no sistema ferroviário nacional.
Que ele busque a eficiência na alocação de recursos e contemple o atendimento à demanda dos segmentos de cargas que não dispõem atualmente de nenhuma solução sobre trilhos.
Planejamento é um processo, não um evento. A oportuna decisão do governo federal de iniciar um novo ciclo de planejamento da infraestrutura é uma chance de se rever as fragilidades e aperfeiçoar o processo de construção da carteira de projetos a serem avaliados, especialmente no que se refere às premissas adotadas e aos objetivos a serem alcançados. Trata-se de buscar garantir o atendimento aos fluxos de abastecimento e de exportação com uma infraestrutura adequada à oferta de serviços de transporte ferroviário competitivos e eficientes, em todo o território nacional e para os diversos tipos de cargas.
*Bernardo Figueiredo é consultor em transporte e CEO da TAV Brasil.
**Lucas Navarro Prado é advogado especialista em estruturação de negócios e solução de litígios envolvendo ativos de infraestrutura pública no Brasil.
Artigo publicado na Agência iNFRA no dia 29 de julho de 2024