O assistente administrativo Marco Aurélio dos Santos, 45, passa mais de quatro horas todos os dias no trem e no metrô de São Paulo.

Entre o Campo Limpo (extremo sul), onde mora, até Guaianases (zona leste), onde trabalha em uma unidade de saúde, ele registra o movimento dos trens com o celular, faz boletins que posta nas redes sociais e costuma cobrar o governo estadual sobre melhorias.

Embora ainda pegue parte do trajeto com trens cheios, Marco Aurélio diz que na maior do caminho as composições têm lotação muito menor do que a que estava acostumado a encarar antes da pandemia.

Os números confirmam a percepção de Marco Aurélio. Segundo a ANPTrilhos, a demanda por esse tipo de transporte chegou a cair 80%, e hoje está em torno de 34% do que era antes, com as medidas de reabertura tomadas por municípios.

Os sistemas de metrô e trens, que transportavam 12 milhões de pessoas por dia no país antes da pandemia da Covid-19, já acumulam R$ 4 bilhões de perda de receita neste ano e ameaçam parar.

O transporte sobre trilhos é visto como o mais eficiente para as grandes cidades. No entanto, diante das incertezas, ele pode ser permanentemente afetado, colocando em xeque o modelo de expansão e manutenção da rede por meio de concessões à iniciativa privada.

As empresas têm se virado para cortar custos, mas a redução está longe de ser simples.

“Estamos falando de transporte de alta capacidade, que não foram feitos e pensados para andar vazios ou não se viabilizam”, diz Joubert Flores, da ANPTrilhos. “Nos ônibus há um ajuste mais fácil de fazer, dá para reduzir algumas linhas. No metrô ou trem, 75% do custo da operação é fixo, tem mão de obra, energia e manutenção que não dá pra cortar. Então baixa 80% da sua receita e você não consegue reduzir 30% do seu custo”, afirma.

A situação do Rio é a mais complicada. Os administradores dizem que não há mais caixa para rodar depois de agosto.

O MetrôRio é a empresa privada que assumiu a concessão do serviço, em 1998. O contrato, antigo, não prevê subsídio para a operação, ou seja, a empresa deve se manter sozinha. Hoje, cerca de 95% do caixa vem das tarifas pagas pelos passageiros, e o restante vem de publicidade e aluguel de lojas, que também perderam valor com a queda na demanda.

Segundo o presidente da empresa, Guilherme Ramalho, a companhia já perdeu R$ 270 milhões em receita, número que deve chegar a R$ 500 milhões até o fim do ano. Ele diz que a empresa tem tido um prejuízo mensal de R$ 35 milhões.

“É um problema de liquidez inédito. Não existe paralelo de uma queda sustentada que chegou a 87% no auge da pandemia. E temos uma recuperação muito lenta, com pessoas procurando se deslocar por outros modos”, afirma.

Para reduzir os gastos, os investimentos em melhorias foram todos paralisados, e a empresa precisou suspender contratos de trabalho e reduzir salários. Caso não haja uma solução emergencial, Ramalho diz que prevê um desmonte do setor, com absorção dos passageiros pelo transporte rodoviário, legal ou ilegal —como vans. “O prejuízo fica para o cidadão”, diz.

A Supervia, empresa que opera os trens urbanos da capital fluminense, passa por situação parecida e também ameaça suspender operações. Juntas, as empresas têm demandado um aporte financeiro emergencial do governo do Rio a curto prazo e discutem formas de reequilibrar a operação a médio prazo.

“O Rio pode fechar antes e outras cidades podem aguentar por um tempo, mas uma hora o fôlego vai acabar”, diz Flores, da ANPTrilhos.

O secretário de Transportes Metropolitanos de São Paulo, Alexandre Baldy, que cuida do Metrô e da CPTM (trens urbanos), afirma que a situação é grave. “Não existe empresa que se sustente com queda de receita de 80%.”

O estado chegou a fazer um plano que prevê uma escala com cinco níveis para a gravidade da doença na região metropolitana. Na última, poderia fechar estações e suspender parte da operação. Segundo Baldy, hoje estamos no nível 2, mas a situação já foi mais grave, sobretudo porque o Metrô chegou a ter 53% de seus funcionários afastados, comprometendo a operação —hoje essa taxa está em 25%.

A secretaria prevê uma perda de receita de R$ 1 bilhão até o fim do ano. O problema não é só a tarifa, mas também o comércio fechado nas estações e as concessões de espaços como os shoppings Metrô Tatuapé, Itaquera e Santa Cruz.

Para economizar, o governo avança em diferentes áreas. Ofereceu o trabalho remoto permanente e espera uma adesão de 600 funcionários. Dos quatro prédios administrativos do Metrô, deve fechar três. Além disso, conta também com concessões já previstas, como as áreas comerciais das 14 estações da linha 2-verde do metrô e os espaços publicitários da CPTM.

Diferentemente do Rio, as operações privatizadas em São Paulo não dependem da tarifa. As linhas 4 e 5 do metrô paulista são operadas pela CCR, que administra também o metrô de Salvador e o VLT do Rio.

Os contratos de concessão já preveem um equilíbrio financeiro de modo que não sejam impactados nem por congelamentos ou aumentos tarifários. Há um fundo que paga a remuneração se as operações não garantirem o valor mínimo previsto no contrato

O presidente da CCR Mobilidade, Luis Valença, afirma que a perda é grande, mas espera uma recuperação até o fim do ano. Como os contratos de concessão são de longo prazo, a compensação pode se dar nos anos seguintes.

A empresa espera uma perda de R$ 450 milhões até o fim do ano. “Mantida a nossa previsão de recuperação de demanda, com a retomada gradual da economia, a gente imagina que nossa capacidade financeira seja suficiente para suportar essa operação”, diz ele.

Em comum, os gestores afirmam que é preciso repensar o modelo de financiamento, principalmente com uma taxação sobre o transporte individual para pagar o transporte público. Também há um entendimento de que o governo federal possa passar a arcar com uma fatia dos custos.

“Sem querer ser pessimista, mas o dia seguinte não vai ser fácil. Hoje, 70% dos usuários do transporte público o fazem para trabalhar. Se o desemprego aumentar, vai ter uma queda na demanda. Muitas empresas adotaram trabalho remoto, e se uma pequena parte dos passageiros continuar trabalhando de casa por um período longo será mais uma perda na demanda e, consequentemente, da receita”, diz Flores.

Para o consultor em transporte Flaminio Fichmann, a situação do transporte sobre trens, diretamente sob domínio do estado, é mais simples do que nos serviços concedidos.

A tendência, diz ele, é que empresas que gerem os serviços busquem o poder público para conseguir reequilíbrios e que, no futuro, as concessões fiquem mais caras. Como há casos em que a iniciativa privada entra para realizar obras de expansão, num cenário de crise nos próximos anos o sonho de uma rede maior pode ficar mais distante.

“O investimento, principalmente a longo prazo, corre atrás de certezas. Quanto maior a incerteza, maior o valor a ser cobrado por qualquer proponente”, afirma. Isso pode afetar não só os gastos do governo com o transporte mas também o custo para a população.

Fichmann diz que, além de um preço superior, outra possibilidade para amortizar o custo pós-pandemia é o aumento do tempo de concessões, de forma que os investimentos iniciais tenham mais tempo para ser recuperados.

O consultor acrescenta que os projetos para transporte sobre trilhos deverão se adaptar à nova realidade, uma vez que antes da pandemia a concentração de seis pessoas por metro quadrado parecia razoável dentro das composições. “Tem trecho da linha 3-vermelha do metrô [de SP] que tem mais de nove. Isso vai contra a política de distanciamento”.

Em São Paulo, no começo da pandemia, houve muitas reclamações sobre a quantidade insuficiente de trens e a consequente lotação. Com o passar dos meses, o intervalo dos trens foi diminuindo.

Mesmo com trens mais vazios hoje em dia, o assistente administrativo Marco Aurélio diz que o isolamento social parece algo impossível de se alcançar. “Não tem como. Você fica a poucos centímetros da outra pessoa”, diz ele.

Embora haja previsão de que a quantidade de passageiros demore a voltar ao patamar de anos anteriores, a expectativa é que até o fim do ano haja mais gente circulando. Especialistas afirmam que um escalonamento no horário de entrada da população no serviço poderia ajudar a diminuir os problemas de lotação nos horários de pico.

19/07/2020 – Folha de S.Paulo