Depois de décadas fora da lista de prioridades do governo, o sistema de trens de passageiros ganhou no final de junho uma linha de financiamento de R$ 1 bilhão do BNDES para renovação de vagões e locomotivas. Os empréstimos serão concedidos pelo prazo de até 20 anos, com 4 de carência e taxas de juros de 5,5% ao ano, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional. A linha foi batizada de Retrem.
É um raro sinal de prioridade para o transporte sobre trilhos, disse Roberta Marchesi, diretora-executiva da ANPTrilhos, uma associação de empresas que operam transporte ferroviário de passageiros.
O governo sempre teve programas de incentivo para o transporte por automóveis, como as reduções do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), e por ônibus (que já contam com um programa de renovação de frota). Vários governos de diferentes perfis partidários deram incentivos à indústria automobilística como forma de estimular a atividade econômica e a geração de empregos. A ANPTrilhos reivindica há anos 1 tratamento igual para os trens de passageiros.
O Retrem reflete um momento de atenção especial aos trens de passageiros no Brasil e no mundo. Aqui, metrôs e trens urbanos ganham força política por algo que já se sabe há anos: a mobilidade nas grandes cidades está em colapso.
Para dar conta da multidão que se desloca em São Paulo, a única solução é transporte sobre trilhos, como afirmou Alexandre Baldy, secretário dos Transportes Metropolitanos do Estado, nesta entrevista para a série especial Como o Brasil se move (leia aqui as reportagens).
Nos grandes centros, trens e metrôs ocupam o topo das prioridades por causa da questão ambiental. A cidade de Londres, por exemplo, tem um plano de investimentos em mobilidade pautada pela saúde. Lisboa será, em 2020, a capital verde da Europa, com programas na mesma linha.
Os 1.000 km de trilhos para passageiros em operação no Brasil evitam que sejam despejados no ar 2 milhões de toneladas de poluentes a cada ano. Para haver mais investimento, existem alguns obstáculos, como:
• custo – transporte sobre trilhos é caro. Um quilômetro de metrô custa R$ 500 milhões, contra R$ 50 milhões de BRT, disse o professor Ciro Biderman, da Fundação Getúlio Vargas. Os governos de todos os níveis enfrentam dificuldades de caixa;
• projetos – há interesse do setor privado em investir, mas é preciso estruturar projetos, como já mostrou esta série. Em muitos casos, o serviço exigirá algum aporte de recursos públicos, para que as passagens não fiquem caras demais;
• desinteresse político – nem todos os governantes estão dispostos a gastar tempo e energia com 1 projeto que dificilmente inaugurarão. Investimentos em trens e metrôs levam tempo;
• planejamento – no Brasil, quem concede o transporte público é o município. Isso dificulta a integração e o planejamento, principalmente nas metrópoles.
Autoridades metropolitanas
Comparada com outras grandes cidades de seu porte, São Paulo tem uma rede pequena de transportes sobre trilhos.
Essa situação reflete erros históricos, como o abandono da rede de bondes e a opção pelo transporte sobre pneus, explica Ciro Biderman. Também é resultado do início tardio da construção da rede de metrôs, nos anos 1970, quase um século depois de Londres e Nova York. À medida em que as cidades se consolidam, o avanço das obras se torna mais difícil e mais caro.
O que as cidades com redes grandes e integradas têm em comum é a presença de uma autoridade metropolitana de transportes. É um órgão que coordena as prefeituras na prestação de serviços e a gestão do transporte metropolitano. O modelo evita, por exemplo, a concorrência entre modais e dando mais fluidez ao transporte na região.
Faz falta em situações como essa: na avenida W3, que corta as Asas do Plano Piloto de Brasília na transversal, passam 140 linhas de ônibus. São rotas de dentro da própria capital e outras que vêm das cidades satélites e de bairros mais distantes do Distrito Federal. As sobreposições custam caro ao usuário. Poderiam ser eliminadas com um planejamento mais eficiente. É o tipo de medida que uma autoridade metropolitana poderia tomar, afirmou Roberta Marchesi, da ANPTrilhos.
Outra vantagem de uma coordenação acima do nível municipal é o planejamento de longo prazo. Um plano de mobilidade para a região metropolitana ficaria menos sujeito a interrupções motivadas por interesses imediatistas de alguns prefeitos.
Um plano mais estável traz uma 3ª vantagem: mais segurança para o investidor privado, segundo observou Venilton Tadini, presidente da Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base) nesta entrevista. A entidade defende a implantação das autoridades metropolitanas de transporte no Brasil. O mesmo faz a ANPTrilhos
Na implantação de 1 modelo metropolitano, o exemplo mais adequado à realidade brasileira é o de Madri, afirmou Roberta. Lá, cada município decide se integra ou não o sistema metropolitano. Se adere, recebe subsídios às passagens pagos pela autoridade metropolitana.
Novamente aí, a crise fiscal é um problema. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad disse que a integração do transporte metropolitano não avançou até hoje no Brasil por um problema orçamentário. “O governador não quer puxar o assunto para sua mesa, porque implicaria [aportar] mais orçamento, em termos de subsídio, para articular os vários modais: trem, metrô, ônibus municipal e intermunicipal, afirmou. Acaba virando um assunto que todos querem empurrar uns para os outros.”
Com a implantação do bilhete único, que integra o sistema de trilhos ao ônibus –mas não de forma total– e do cartão BOM, na região metropolitana de São Paulo, que permite o acesso do passageiro de ônibus intermunicipais ao Metrô e aos trens, e a criação de corredores conectando cidades como as do ABCD, a cidade passou a ter um nível mais elevado de integração. Está em curso uma pesquisa para determinar se é suficiente.
Mobilidade urbana é uma das áreas que podem ter a elaboração de projetos financiado pelo FEP, da Caixa. Mas, até o momento, tem sido baixo o interesse das prefeituras pelo apoio, afirmou a diretora da ANPTrilhos.
O FEP financia a parte mais determinante das parcerias de governos com a iniciativa privada, que é a elaboração de projetos. Prefeituras e Estados costumam gastar anos para cumprir essa etapa. Agora, têm a disposição não só dinheiro, como apoio técnico de quem já fez empreendimentos desse tipo. Leia aqui como funciona a “fábrica de projetos” do governo Bolsonaro.
ENERGIA
Com a tendência de crescimento no transporte sobre trilhos, a demanda por energia deve crescer. O Ministério do Desenvolvimento Regional estuda políticas para uso de fontes alternativas aos combustíveis fósseis.
Um exemplo é o metrô de Brasília. Três estações geram sua própria energia com painéis solares. A iniciativa foi premiada pela ONU em 2017, com o prêmio Golden Chariot.
A energia abastece as estações, mas não os trens. Para esses, a aposta é em melhorias tecnológicas. A energia representa até 20% do custo total da operação do sistema. É o 2º maior item de despesa, atrás apenas da folha de pessoal. Os trens de São Paulo, por exemplo, já utilizam motores mais modernos e econômicos.
Outra forma de reduzir custos é a compra de energia no mercado livre. Indústrias e outros grandes consumidores não compram energia das distribuidoras, e sim direto do sistema.
Equidade
A oferta de transporte urbano de alta e média capacidades (trens, metrôs, VLTs, BRTs) impacta na produtividade da economia, com pessoas gastando menos tempo e dinheiro para ir e voltar do trabalho. Também promove a equidade. Em megalópoles como São Paulo e Rio, as pessoas de menor renda vivem distante do centro da cidade.
Em Nova York, 77% da população vive e trabalha a até 1 km de algum transporte público de grande ou média capacidade, como metrô, trem, VLT ou BRT. No Brasil, a média nas regiões metropolitanas é de 25%. Esse índice é de 48% na cidade do México e 60% em Pequim, segundo dados do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento).
“É um problema no Brasil, onde temos cidades muito concentradas em termos de oportunidades e serviços, e uma população muito espalhada, principalmente a de baixa renda”, afirmou Clarisse Linke, diretora-executiva do instituto.
A tendência mundial mais moderna na gestão do espaço urbano advoga que a pessoa deve concentrar trabalho e estudo no bairro onde vive.
17/09/2019 – Poder 360