Armínio Fraga Neto
O Brasil vive uma profunda crise, de dimensões múltiplas: econômica, política, institucional e moral. Essas crises têm raízes comuns que se manifestam com clareza na incapacidade do Estado para agir de forma a construir um futuro melhor para o país.
Trata-se de quadro complexo, e as relações de causa e efeito são mal entendidas e se perdem no tempo. Não me cabe aqui buscar um grande diagnóstico e uma resposta completa, seria demais para mim, mas apenas situar neste contexto o papel relevante da revolução de governança corporativa que vem ocorrendo aqui há mais de 20 anos.
Destacam-se a criação da CVM na década de 70 e seu fortalecimento a partir de então, do Novo Mercado e do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBCG) e, como consequência, da consolidação da importância de uma cultura de boa governança como parâmetro na avaliação das empresas pelo mercado, esse último talvez até o ponto mais importante.
Tão forte tem sido essa mudança que, em vários momentos ao longo dos últimos 15-20 anos, me vi dizendo com frequência que, com o tempo, não seria loucura imaginar que essa melhor governança privada começasse a contaminar positivamente a governança do setor público. Infelizmente, na realidade não foi bem assim.
O fato é que o Brasil tem problemas graves de governança em seu mais alto nível, quase que uma desgovernança! Esses problemas têm se mostrado bastante resistentes a críticas e tratamentos. Vários aspectos aparecem hoje ao vivo e a cores no noticiário diário: corrupção, recessão, violência, desordem, populismo. Não surpreende, portanto, que ao mesmo tempo cresça a rejeição à classe política e seus partidos.
Vale registrar que essa tragédia não foi causada apenas por um grupo de políticos e burocratas desonestos e incompetentes, que adotaram um modelo econômico errado e raptaram o Estado em benefício próprio. Foi muito mais do que isso, foi na prática uma parceria do governo com importantes lideranças do setor empresarial, que por “boas” (mas equivocadas) e más razões se atiraram com entusiasmo nessa mal fadada empreitada. No fundo, o Brasil Velho, com suas profundas raízes patrimonialistas e corporativistas, venceu, e o Brasil que queremos, o da boa governança, perdeu.
Apesar desse fiasco, sigo acreditando que, no fim da linha, ainda dá para ganhar o jogo com a aposta em melhores regras e costumes. Vejamos alguns exemplos do mundo da governança corporativa:
1º caso: empresas com controlador definido – a questão maior é a proteção ao acionista minoritário – esse caso é o mais frequente aqui no Brasil. Nessa área se avançou bastante, especialmente para empresas privadas.
2º caso: estatais – temos aqui o caso particular de controle definido e dono com objetivos em parte não econômicos. Avançou-se com a recente aprovação da Lei das Estatais, mas sou cético quanto à lógica de o governo ter empresas. Me explico: por definição, governos têm empresas para impor seus objetivos não econômicos. Estes objetivos sempre têm custos, que deveriam fazer parte do orçamento nacional, disputando espaço com outros usos para os escassos recursos. Não se trata, portanto, de uma questão apenas econômica, mas de ponto fundamental para o bom funcionamento de qualquer democracia digna do nome.
Além disso, nossas estatais têm se mostrado extremamente ineficientes. Recursos escassos são desperdiçados não só com corrupção, mas sobretudo com má gestão e burocracia. Devido à sua natureza política, o processo de escolha dos dirigentes das estatais não obedece, e dificilmente obedecerá, qualquer padrão de boa governança. O controle dos desmandos e malfeitos é dificílimo e, quanto mais regras criamos para coibí-los, mais burocráticas e ineficientes as estatais se tornam.
Na prática, o apoio à existência de estatais vem justamente daqueles que de beneficiam dessas distorções, sejam eles clientes, funcionários ou fornecedores. Melhor seria que o governo contratasse de forma transparente, orçada e competitiva tudo aquilo que fosse desejado e justificado. Me parece que as caríssimas lições do petrolão e a nossa longa e custosa experiência com bancos públicos grita essa conclusão. Defendo em função disso a privatização de praticamente todas as empresas públicas.
Como fazê-lo é tema que deveria entrar na agenda do debate público o quanto antes. Temas como concorrência e governança vem à mente aqui. Por exemplo, eu não venderia a Petrobrás para um comprador apenas. Tampouco venderia ações da BR Distribuidora antes de vender o controle. Outro caso relevante é o dos bancos públicos: hoje mais de 60% dos ativos bancários no Brasil estão nos balanços desses bancos. Trata-se de um percentual muito elevado, cujo impacto distributivo e sobre a eficiência da economia merece estudo mais aprofundado, a partir de dados granulares hoje não plenamente disponíveis.
3º caso: empresas sem controlador definido – o principal desafio é evitar abusos da administração. Esse caso tende a crescer em importância, sendo uma possível opção para a privatização, que requer um tratamento diferenciado do ponto de vista das regras e práticas da boa governança corporativa. A proposta de transformar a Eletrobrás em uma corporação é das mais ousadas, e merece ser acompanhada no detalhe, para garantir que o resultado final seja suficientemente blindado contra eventuais retrocessos no futuro.
Finalmente, cabe registrar que, mesmo com regras e leis bem desenhadas, é necessário um algo mais de natureza ética e comportamental. Isso porque regras detalhadas estimulam a busca de brechas e necessitam do apoio complementar de uma boa cultura de governança, na linha do que defendem muitos pensadores contemporâneos.
Armínio Fraga Neto, economista, foi presidente do Banco Central e é sócio-fundador da Gávea Investimentos.