Por um mercado mais livre no transporte

O aumento da tarifa de ônibus e metrô em São Paulo levou a cidade a viver ontem mais uma noite de protestos comandados pelo Movimento Passe Livre, o mesmo que, dois anos e meio atrás, acendeu a faísca das manifestações em que milhões tomaram contas das ruas do país – cuja agenda mais objetiva era o fim do reajuste de 20 centavos, lembra? A agressividade dos manifestantes e sua resistência em seguir o trajeto inicialmente previsto acabou gerando confronto com a polícia (foto).

Policiais fazem barreira para impedir a passagem de manifestantes durante ato contra o aumento da tarifa em São Paulo

O gás lacrimogêneo, os feridos, as imagens que costumam acompanhar esse tipo de confronto contribuirão para gerar a condenação previsível à violência policial, quase sempre presente nesses momentos – e na maioria das vezes desnecessária. Trata-se de um debate relevante. Mas ele obscurece outro, bem mais importante para o grosso da população, sobre o próprio preço do transporte.

O Movimento Passe Livre reivindica que o cidadão não pague nada para andar de ônibus ou metrô. Trata-se de uma ideia que a maioria evidentemente julga absurda, uma dessas fantasias de idealistas que desconhecem o funcionamento da economia. Ela equivaleria a um subsídio de 100% do custo do transporte na cidade. Como nada é de graça, os impostos pagos por toda a população financiariam as cerca de 243 milhões de viagens realizadas por mês.

Para justificar o aumento no preço básico da passagem, de R$ 3,50 para R$ 3,80 (bem inferior à inflação no período), a Prefeitura da São Paulo apresentou um relatório extenso e uma planilha de custos detalhados . A análise dos dados revela que o sistema de transporte paulistano, embora não contemple a fantasia do MPL, não está tão distante assim do absurdo. Trata-se de um caso clássico de regulação que, a pretexto de atender às demandas de todos, não agrada ninguém. Mais uma evidência de como o Estado brasileiro se mete onde não é necessário e, por mais nobres que sejam suas intenções, mais atrapalha que ajuda.

A primeira constatação é que o valor da tarifa é um conceito puramente abstrato. Do total de viagens, apenas um terço (34%) são pagas pelo preço cheio. Quase um quinto (19%) já saem de graça, entre isenções concedidas a idosos, deficientes, desempregados, estudantes da rede pública ou beneficiados pelos programas sociais do governo (vários dos militantes do MPL entre eles). Outro terço (32%) é pago pelos empregadores na forma de vale-transporte. As demais viagens recebem descontos relativos a passe escolar, a bilhetes integrados com a rede de trens e metrô ou às modalidades de pagamento diário, semanal e mensal (que não sofreram reajuste).

Com o novo preço de R$ 3,80, a Prefeitura estima o valor médio pago pelos usuários em pouco mais de R$ 2,80 por viagem – esse é o faturamento real das empresas por passageiro, levando em conta todos os descontos e isenções. Os incentivos, como os bilhetes gratuitos e a manutenção no preço dos bilhetes diário, mensal e semanal, têm funcionado de modo a reduzir o número de pagantes, que caiu de 125 milhões para 113 milhões entre dezembro de 2014 e dezembro de 2015.

Na ponta das despesas, o movimento é inverso. Houve um aumento de R$ 550 milhões para R$ 590 milhões no gasto mensal com a operação dos ônibus pelas empresas – o sistema como um todo custa R$ 646 milhões, somando a infra-estrutura. Considerada a alta crescente em mão-de-obra, combustível e nos investimentos necessários para manter a frota, o custo por passageiro transportado subiu de R$ 2,43, em dezembro de 2014, para R$ 2,65, em dezembro de 2015 – ou 9%. Consideradas todas as isenções concedidas ao longo do ano a estudantes e desempregados, o custo por passageiro pagante subiu de R$ 4,78 para R$ 5,71 – ou quase 20%.

Pela legislação que regula o transporte na cidade, a Prefeitura subsidia todas as empresas de ônibus, pois o faturamento delas com as passagens é obviamente insuficiente para arcar com tais custos. Ao longo dos últimos anos, o total desses subsídios só tem aumentado. De R$ 520 milhões em 2011, ele chegou a R$ 1,9 bilhão no ano passado, número que a Prefeitura prevê repetir em 2016, diante de um custo total de aproximadamente R$ 7 bilhões. A lucratividade das empresas de ônibus, em compensação, só tem caído. Até 2013, a margem de lucro média era de 18%, de acordo com uma auditoria encomendada pela Prefeitura. Em novas licitações, foi estipulada em pouco menos de 10%. Nas planilhas atuais, ela é de 5%, ou menos de R$ 30 milhões mensais.

O resultado dessa confusão de isenções e subsídios, da intromissão da Prefeitura nas planilhas e no lucro das empresas, é que ninguém fica satisfeito. O passageiro reclama do preço e da qualidade do transporte e das linhas. O empresário não tem incentivo para investir na melhora. A Prefeitura gasta uma proporção maior dos nossos impostos para sustentar um sistema claramente disfuncional.

A solução economicamente racional para o problema é contra-intuitiva e, infelizmente, impopular: eliminar os subsídios e mudar as regras de licitação. Pode justo que o Estado ofereça isenção de tarifa ao cidadão que necessite disso. Mas não há sentido algum em subsidiar empresas. Se o custo das isenções é uma tarifa de R$ 5,71, esse deveria ser o preço das passagens. É alto? Que tal, então, estabelecer nas licitações a competição no preço, como é feito no pedágio das estradas? Que tal deixar de se intrometer nas planilhas de custos e no modo como as empresas gastam seu dinheiro? Que tal, em vez disso, deixá-las eliminar práticas jurássicas, como os cobradores, para poder investir em inovações?

É um absurdo que os ônibus de São Paulo ainda trafeguem sem ar condicionado, com câmbio manual, gerando uma experiência péssima a qualquer um que sacoleja neles por aí – entre os quais me incluo. Tirar a Prefeitura dos detalhes da operação permitirá às empresas lucrar mais, de modo a poder investir mais para modernizar a frota e prestar um serviço melhor aos usuários. Os subsídios apenas as tornam viciadas num sistema ineficaz, sempre pedindo mais dinheiro ao governo e esquecendo sua obrigação primordial. Além de funcionar como incentivo à corrupção e ao capitalismo de compadrio (leia mais sobre ele aqui).

O papel do Estado é estabelecer as linhas e as regras dos mecanismos automáticos de cobrança (de acordo com a necessidade da população), licitar os serviços segundo critérios transparentes, criar os corredores de ônibus para disciplinar o uso do espaço público, fiscalizar e punir as operações ilegais e conceder aqueles descontos e isenções que são realmente justos (um quinto das viagens me parece um exagero). O resto é com o mercado. Pode apostar que a população teria um serviço melhor, sem que a passagem fosse muito mais cara. Em vez de passe livre, está na hora de mais competição, de mais capitalismo – enfim, de um mercado mais livre.

13/01/2016 – G1