Passaporte para a mobilidade

Inovação em alguns centros urbanos, bilhete único incentiva a multimodalidade e atrai usuários; setor destaca importância de planejamento para linhas não ficarem deficitárias

A razão de ser de uma cidade está relacionada, entre outras questões, à possibilidade de as pessoas poderem se movimentar por ela. Não à toa, a motivação maior da revolta popular que se alastrou por todo o Brasil, em 2013, foi a reivindicação por um transporte coletivo de maior qualidade.

Nesse contexto, a necessidade de integrar os modais que transportam milhões de vidas diariamente nos centros urbanos do país assume, cada vez mais, papel central nessa agenda. E a implantação do sistema de bilhete único surge para enfrentar a limitação do deslocamento à jornada de trabalho e para estimular a multimodalidade.

O instrumento — utilizado em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e, recentemente, em Brasília — pretende dar aos trabalhadores, estudantes, idosos e pessoas com deficiência a oportunidade de usufruir da cidade muito além do momento restrito e do itinerário limitado do transporte casa-trabalho.

O bilhete único é uma ferramenta eletrônica que unifica em apenas um sistema toda a bilhetagem dos meios de transporte. Garante que os usuários de ônibus paguem apenas uma tarifa, em média, entre R$ 3 e R$ 5, e tenham direito, normalmente, a quantos ônibus sejam necessários durante o período de até três horas, além de poder fazer a integração com metrô e trem, sem custo adicional ou com um pequeno acréscimo. São Paulo, mesmo com a complexidade que envolve o sistema de transporte coletivo, com ônibus, metrô e trem percorrendo longas distâncias, é onde o modelo melhor funciona no Brasil. Segundo a assessoria de imprensa da SPTrans, 95% dos passageiros do sistema municipal de transporte público utilizam o bilhete único como forma de pagamento da tarifa.

Em um dia útil, são realizados 9,6 milhões de embarques nos ônibus municipais. A cidade conta, atualmente, com uma frota de 14.440 ônibus e 1.350 linhas, das quais 150 operam entre meia-noite e 4h no serviço noturno.

Os veículos são equipados com validadores eletrônicos que fazem a leitura do bilhete único. Os usuários que pagam tarifa integral representam 49% do total das viagens, incluindo os trabalhadores com emprego formal cuja despesa com transporte é subsidiada pelos empregadores por meio do vale-transporte.

Além disso, aproximadamente um em cada quatro usuários se beneficia de algum tipo de desconto previsto na política tarifária, incluindo a integração com os trilhos, desconto para estudantes não incluídos no Passe Livre e passageiros que utilizam créditos de natureza temporal (bilhete único mensal e bilhete 24h).

O engenheiro civil e mestre em engenharia de transportes Horácio Augusto Figueira exalta o ganho em mobilidade e em praticidade proporcionado pela instituição do bilhete único. Ele explica que, no passado, há cerca de 40 anos, quando foram criados os corredores de ônibus em Curitiba (PR), o normal era a implantação de megaterminais fechados para poder fazer transferência gratuita de uma linha tronco para uma alimentadora, ou vice-versa.

“Hoje, isso ainda pode existir, por questões de conforto e de demanda. Com o bilhete único, porém, a transferência pode ser feita em qualquer ponto”, diz. Ele menciona que, em São Paulo, é possível, por exemplo, a partir desse sistema, fazer viagens metropolitanas de até 50 km de distância.

Racionalização da rede

A superintendente da ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos), Roberta Marchesi, ressalta que, entre os ganhos do bilhete único, estão a possibilidade de baratear as tarifas, a redução do tempo de deslocamento dos usuários — que também podem optar pelas melhores rotas para suas necessidades — e a utilização de um único cartão em todos os modais, dispensando o uso de dinheiro em espécie e o uso de vários bilhetes. Além disso, ela destaca a oportunidade para governantes otimizarem
a rede de transporte.

“Quando o bilhete único é criado, é necessário o subsídio do Estado. Não existe isso de uma pessoa pegar dois ou três conduções e pagar muito mais barato, sem que alguém pague por esse custo operacional. No momento em que o governo concede esse subsídio, cria-se a oportunidade de aprimorar sua estrutura de transporte, podendo definir quais as melhores opções de rotas de transporte, levando em consideração os modos disponíveis, os tempos de deslocamento e a própria oferta. Isso faz com que não haja sobreoferta de vários sistemas na mesma rota, otimizando a rede e deixando uma única oferta para aquele eixo.”

Os sistemas brasileiros de integração de transporte coletivo, contudo, têm pecado nessa revisão da rede e na identificação dos tipos de racionalização necessários para evitar linhas deficitárias e queda de receita. Essa é a avaliação do presidente-executivo da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), Otávio Cunha. Ele cita o recém-lançado bilhete único do Distrito Federal como exemplo da falta de planejamento prévio.

“Como a rede não foi racionalizada, provavelmente vai ter implicação de ordem econômica com a queda da receita. Brasília já conta com a subvenção do governo e, naturalmente, se a implantação trouxer desequilíbro, isso sairá do orçamento do DF.” Nesse sentido, o especialista Horácio Augusto Figueira salienta que a “química tarifária” ainda é o grande nó do sistema. De acordo com ele, o sistema de contrato é feito em cima de uma tarifa menor e isso é repartido por todos os operadores, uma vez que tudo é registrado eletronicamente via validador.

“Peguemos os milhões de passageiros de São Paulo, por exemplo, que passam pelos validadores dos ônibus. Isso tudo será somado com o que passou no metrô e na CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) para, posteriormente, a receita ser repartida. Mas isso não é suficiente, porque há múltiplas viagens, que usam vários modos, e os custos operacionais do sistema de ônibus não estão adequados em relação a tarifas, especialmente em função do congelamento das tarifas em várias capitais.”

Inclusão

O secretário de Mobilidade Urbana do DF, Fábio Damasceno, esclarece que a rede brasiliense será racionalizada gradualmente, à medida que o sistema se consolide e sejam identificadas necessidades de revisão e/ou extinção de linhas. Ele informa ainda que o advento do bilhete único em Brasília aumentará as chances de novos empregos na região, ao baratear os custos das empresas com passagens para os funcionários. “Surgiam ilhas de emprego. As empresas contratavam apenas as pessoas que moravam mais perto. Às vezes, deixavam de empregar a mão de obra necessária para os serviços porque faltavam trabalhadores que viviam próximos.”

Como o acesso entre regiões do Distrito Federal pode demandar mais de um ônibus para o brasiliense chegar ao trabalho, esse deslocamento, muitas vezes, ficava elevado para os empregadores. “Hoje, ao unificar a tarifa, é dada oportunidade a toda a população do Distrito Federal de poder trabalhar em todas as regiões sem essa distinção de onde as pessoas moram.

Já temos informações de que empresas estão economizando até 40% com o transporte dos seus empregados. Isso era um fator de exclusão social no DF”, comemora o secretário, ressaltando que, só nas duas
primeiras semanas, foram registradas em torno de 20 mil pessoas a mais no sistema, apenas com a inclusão do bilhete único.

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Outubro/2017 – Revista CNT Transporte Atual