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por Lourenco Mueller

Conceito de ‘lugar’

Essa palavra, lugar, sempre implicou uma ideia de imobilidade, de ponto fixo. No horizonte o navio se desloca, na planície do Seringueti o felino persegue a gazela, na cidade nos deslocamos em torno de uma paisagem construída, mais ou menos densa, mas o movimento é do barco e dos animais. Mas é também o do trem nas estações: o ‘lugar’permanece lá, imóvel. No interior da cabine, entretanto, o lugar se move.

O conceito de ‘lugar’ vem se tornando uma das discussões mais importantes da geografia moderna e, consequentemente, uma referência para as profissões que lidam com esse conceito, os planejadores.

O geógrafo baiano Milton Santos, um dos maiores nomes da universidade brasileira, expressa bem a ideia de ‘lugar’, uma de suas pérolas conceituais, aliás oportuna para explicar outra questão contemporânea, a do ‘local’ versus o ‘global’. Ele concebe e desdobra o conceito ao longo do tempo (escreveu “O centro da cidade do Salvador” em 1958) revendo, renovando, enriquecendo sua complexidade e suas categorias de análise e decifrando um emaranhado de significados.

Numa linha emotiva, pergunta Tuan, “…quanto demora para desenvolver uma afeição duradoura pelo lugar? O sentido de lugar é uma qualidade do equilíbrio do conhecimento entre sentir-se enraizado no lugar, que é inconsciente, e sentir-se estranho, que está associado a uma consciência exagerada – e exagerada porque é somente ou em grande parte mental…”

Salvador, hoje com três milhões de habitantes e acrescida de um tecido urbano caótico e desordenado, bem merece um novo olhar inquiridor nessa chegada brusca dos trilhos do metrô, hoje, e os do VLT amanhã, que interferem definitiva e explosivamente na ideia de ‘lugar’.

Em artigo recente (‘Negro Milton Santos, maior nome da universidade’. Jornal A Tarde -22/04/2018) conclamo os alunos da pós-graduação de Geografia da UfBa a enfrentarem o desafio de discutir ideias seminais para ‘reinventar’ nossa cidade, e isso não deve acontecer sem uma pesquisa inteligente sobre o corte do promontório por esses novos trilhos urbanos e o metrô: corte/ penetração, que se dá em alta velocidade e se interrompe brusca, mansamente, com regularidade cronológica, ao contrário de todos os outros modais. Mais que um olhar, é um ‘estranhamento’ com que a população se depara, ainda neófita no assunto ‘trilhos’. O deslumbramento que ocorre quase não se disfarça nesse passageiro virgem, ainda não acostumado à nova rotina casa-metrô-trabalho e vice-versa. En vitesse…velozmente.

Por uma nova percepção da relação lugar/movimento

Seria muito prático para as cidades e seus habitantes de um modo geral se as pessoas – sobretudo aquelas que se dirigem para o centro ou os subcentros – precisassem apenas de um modal para chegar ao seu destino, e esse modal fosse o trem, o VLT, a bicicleta, o elevador (plano inclinado inclusive) ou os próprios pés (e suas atuais extensões portáteis, patins, skates etc.). Explico: do ponto de vista do urbanismo como disciplina ordenadora da mobilidade, do uso e da ocupação do solo, o fardo financeiro e a demanda de espaço para abrigar veículos individuais estacionados encarecem e dilaceram o tecido urbano e os próprios prédios. Para o morador, é óbvia a vantagem, em termos de custo/benefício, desde que sejam bem resolvidos os problemas de acessibilidade e segurança de deslocamento a pé, inevitável em qualquer sistema.

Essa constatação leva a uma curiosa conjunção, a do transporte coletivo com o elevador, fato que já está transformando o desenho urbano das áreas terciárias e residenciais nas grandes cidades. Inclua-se nessa conjunção a enorme dependência humana atual dos dispositivos eletrônicos (celulares, tablets, notebooks) que obriga a ‘deixar’ as mãos livres para manuseá-los. Ou seja, o telefone celular vai ajudar a ‘matar’ o automóvel, parodiando a frase célebre que vaticina sobre o livro matar a arquitetura. (“ceci tuera cela…” Victor Hugo, Notre-Dame de Paris, 1832.)

Resumimos e atualizamos as constatações de Lewis Mumford, ao lado da execração da ‘grande cidade’ no capítulo “O preço do congestionamento” em “A cultura das cidades”:”A descentralização organizada da indústria e a construção de uma série de subcentros, dentro do que é agora a região metropolitana [NY em 1938!], haveria de obviar (sic) boa parte dos transportes metropolitanos”.

Pensando de outra forma – agora na era digital – a enorme perda de tempo nos congestionamentos, engarrafamentos, paralisações (propositais ou não) enfim, leva à compreensão da necessidade do desenho de novos espaços onde o ser humano não dependa tanto dos deslocamentos (‘Lagostas e trilhos’.Jornal A Tarde,3/06/2018).

A superação do automóvel

É uma revanche histórica: mal o mundo acabava de se deslumbrar com os trilhos e o trem a vapor e já surgiam as minúsculas carruagens com motor de combustão, roubando a cena do coletivo em prol do individual, sempre o privilégio dos mais ricos! Hoje, com os belos e modernos desenhos de trens e veículos leves sobre trilhos, as (mal)ditas carruagens metálicas, apesar das novas roupagens e do circo da fórmula um – barulhento fascínio dos tolos – estão decadentes e cada vez mais se convertem nas grandes assassinas das cidades. Literalmente. Não apenas matam os seus ocupantes e os habitantes, mas dificultam as soluções coletivas, exigindo grandes vias e enormes estacionamentos, dentro e fora dos prédios. Um exemplo é mais do que sintomático para provar o que afirmo: recentemente concluído, o edifício mais alto da Europa Ocidental, o “Shard”, em Londres, com seus 310 metros e uma cidade vertical no seu interior, dispõe de apenas 48 vagas emergenciais para automóveis. Convém notar que foi construído sobre u’a malha ferroviária integrada de trem e metrô: caso encerrado.

Conclusões

Essa mobilidade recente para meio milhão de pessoas/dia até o fim do ano vai reconfigurar o uso e a ocupação do solo na capital metropolitana, desde a extrema facilidade para moradias no seu entorno imediato até a curiosidade com o desenho das estações cuja maior parte não é subterrânea mas lembra o dorso de um tatu(!); no entanto, houve a consciência da atmosfera quente e luminosa de Salvador em suas arquiteturas de telhas metálicas autoportantes seccionadas em trechos inclinados com ventilação e iluminação naturais.

A integração das estações (mais de nove mil metros quadrados cada) com seu ambiente na superfície, através de um sistema de passarelas mais ‘robustas’ do que as originais do arquiteto Lelé, e às quais o pedestre já está acostumado, sugere um partido urbanístico revolucionário e possível apenas com a chegada dos trilhos:

(a)a consolidação de verdadeiras ruas elevadas, passiíveis de abrigar atividades diversificadas típicas de centralidades urbanas muito densas;(b)a possibilidade real de remanejamento de ocupação e uso em torno das estações, qualificando-as para um papel distinto no contexto dessa metrópole que vai englobar um novo ‘lugar’ de locomoção, comércio, serviços e novos assentamentos habitacionais;(c)cria ‘pedaços fractais de cidade’ que, se bem planejados, serão autóctones em relação a outros tecidos não conectados tão diretamente ao trem, um conjunto todo ele autossustentável.

Finalmente, o metrô da Bahia ganhou menção honrosa na categoria “Projetos Especiais” do 9º Prêmio AsBEA, que reconhece os melhores projetos arquitetônicos brasileiros; recebeu indicações no World Architecture Festival (WAF) de 2017, entregue em Berlim, na categoria “Transporte”, e no Mies Crown Hall Americas Prize 2016-17, realizado em Chicago (EUA). Hoje, as suas duas linhas têm 19 estações e cinco terminais integrados a ônibus. O projeto final prevê 42km de extensão, 23 estações e dez terminais de ônibus integrados, contemplando a expansão da Linha 1(Pirajá/Cajazeiras/Águas Claras) e da Linha 2 (da Estação Aeroporto até Lauro de Freitas).

*Frase acompanhada de um gesto de mão, em uma estação inaugurada nos primeiros dias do trem metropolitano na Bahia, só agora nesse século 21.

Lourenço Mueller é doutor em Arquitetura e Urbanismo e cientista social pela Universidade Federal da Bahia. Tem cursos de especialização em planejamento regional e urbano na França e na Colômbia. Coordenou o Plano Metropolitano de Desenvolvimento (1983) onde primeiro se recomenda a construção de um metrô na Bahia. Participa de encontros profissionais no Brasil e no exterior. Assina artigos técnicos em revistas e é colunista permanente do jornal A TARDE. Tem seis premiações profissionais nas áreas de projeto, jornalismo e marketing empresarial. Foi professor universitário. Tem dois romances publicados. É artista plástico e ativista urbanístico em Salvador.

 

Artigo publicado no livro “Mobilidade Urbana sobre Trilhos na Ótica dos Grandes Formadores de Opinião”, planejado e publicado pela ANPTrilhos – Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos.

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