A necessidade de uma maior diversidade na matriz de transporte no Brasil é tema recorrente na esfera política. Com a mudança de governo, tanto federal quanto estadual, o assunto mais uma vez volta à tona nos planos dos novos mandatários, com anúncios de investimentos para o desenvolvimento do setor, em especial o ferroviário.
Recentemente, o Ministro dos Transportes, Renan Filho, afirmou que, como parte do plano de 100 dias do Governo Federal, serão destinados cerca de R$ 1,7 bilhão para revitalizar e intensificar as obras em rodovias e ferrovias no país.
De acordo com os dados do agora extinto Ministério da Infraestrutura (MInfra), a malha ferroviária brasileira conta atualmente com cerca de 30 mil km de extensão, mas o segmento passa por uma transformação consistente.
ALAVANCAGEM
Desde 2019, foram realizadas 2 concessões, 4 renovações e 1 investimento cruzado no setor ferroviário – Concessão Ferrovia Norte-Sul (FNS); Concessão da Ferrovia Oeste-Leste (FIOL I); Renovação Rumo Malha Paulista (RMP);
Renovação da Estrada de Ferro Carajás (EFC); Renovação da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) + Ferrovia De Integração Centro-Oeste (FICO); Renovação da MRS Logística; e investimento cruzado na FICO I, totalizando R$ 43,7 bilhões em investimentos.
Segundo Rafael Barros, diretor de engenharia na RB Assessoria e Treinamento, a necessidade de expandir a malha ferroviária é urgente para o país, seja de carga, em um primeiro momento, como também de passageiros.
“As maiores economias do planeta possuem uma matriz de transporte equilibrada entre rodovia e ferrovia, sendo que algumas utilizam ainda um terceiro modal, o hidroviário, como é o caso dos EUA, que possuem 25% de participação na matriz de carga escoando por esse modal”, explica.
“Uma matriz de transporte equilibrada permite alavancar a economia de um país, o que não ocorre no Brasil, que tem 61% da matriz rodando por rodovias, 19% porferrovias, 16% por hidrovias/cabotagem e 4% por dutovias.”
A constatação é compartilhada por Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer). Segundo ele, o país precisa expandir os atuais 30 mil km de malha, além de recuperar os trechos atualmente subutilizados.
“Do total da malha, apenas um terço é utilizado, enquanto outro terço é subutilizado e o terço final não tem mais condições de operar”, ele aponta.
A análise da Abifer é semelhante à de Barros, que estima que pouco mais de 60% da malha ferroviária brasileira se encontram em operação, “com aproximadamente 12 mil km fora de operação ou com pouquíssimo volume de transporte”.
INVESTIMENTOS
Mesmo que ainda insuficientes, alguns investimentos vêm sendo realizados no modal. Em 2022, de acordo com dados do MInfra, um dos destaques foi a construção da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO), entre Mara Rosa (GO) e Água Boa (MT).
Por se tratar de uma obra greenfield de grande porte, a operação exigiu uma inovação legislativa (Art. 25 da lei 13.448/2017), consolidada em um investimento cruzado em razão de prorrogação antecipada da Estrada de Ferro Vitória-Minas. Realizada pela Concessionária Vale, a obra proverá a região central de Mato Grosso de um necessário acesso ferroviário. A extensão estimada do empreendimento é de 383 km, com investimento previsto de R$ 2,7 bilhões.
Outro avanço relevante recente é o modelo de autorizações ferroviárias previsto no Marco Legal das Ferrovias que, desde setembro de 2021, permite à iniciativa privada projetar, construir e operar empreendimentos ferroviários no país com recursos próprios, mediante autorização do Governo Federal.
Segundo Barros, a relevância do novo Marco Legal está em viabilizar o desenvolvimento da infraestrutura ferroviária sem grandes barreiras ou burocracias, pois permite que empresários de diversos setores da economia apresentem projetos consistentes e exequíveis, liberando a construção.
“Essa liberação demanda a obrigatoriedade de se seguir uma série de regras e determinações dos órgãos reguladores e da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres)”, pondera.
“Mas é perceptível que o caminho a ser percorrido pelas autorizações se mostra mais curto e menos problemático, fazendo com que milhares de players e empresas privadas tenham interesse na construção de novas ferrovias.”
Com as novas assinaturas, 32 projetos de ferrovias privadas já foram autorizados, envolvendo R$ 149,6 bilhões em investimentos previstos e 10,9 mil km de extensão por construir, cruzando 15 unidades da Federação (PA, BA, MA, PE, PI, ES, MG, RJ, SP, DF, GO, MT, MS, PR e SC).
Para o especialista da RB Assessoria, o Marco Legal abre a possibilidade de agregar mais de 22 mil km de novas ferrovias à malha, conforme previsto até aqui.
Em tese, a Lei pode ensejar uma revolução no que tange à construção de novas ferrovias e recuperação de trechos ociosos ou abandonados. “Porém, continuaremos a depender da resolução de diversos aspectos que impactam os projetos ferroviários no país, como licenças ambientais, remanejamento de redes de alta tensão, desapropriações, elaboração de projetos consistentes e mão de obra técnica qualificada”, avalia Barros.
EXPECTATIVAS
Para as concessões já existentes, a expectativa segue se confirmando desde 2019, com as renovações antecipadas das principais malhas ferroviárias do país.
Até agora, já foram realizadas quatro renovações antecipadas de contratos (Rumo Malha Paulista, EFC, EFVM e MRS), faltando ainda as renovações da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) e da Rumo Malha Sul, sem contar a desestatização da Ferroeste e a relicitação da Malha Oeste, devolvida pela Rumo, prevista para o biênio 2023/2024.
Além dessas, explica Barros, também ocorreram duas novas concessões, advindas das obras elaboradas pela antiga Valec Engenharia: a Malha Central da FNS (1.534 km) para a Rumo e a FIOL 1 (537 km) para a mineradora Bamin.
Para os próximos anos, prevê-se a concessão das malhas em construção da FIOL 2 pela Infra SA (junção da Valec com a EPL) e as obras da ferrovia FICO 1, pela Vale, como contrapartida da renovação da EFVM, com término das obras previsto para 2027, quando será entregue a uma concessionária através de leilão.
Além dessas, o especialista acredita que as obras da FIOL 3 e da FICO 2 também sairão do papel seguindo o mesmo modelo de parcerias, para futuro leilão aos interessados.
“Esse modelo pode ser continuado pelos próximos governos, ou seja, entrega-se a construção de uma ferrovia para uma empresa privada, se possível em contrapartida”, diz. “Ao término das obras, o ativo é devolvido à União, que então entrega a operação para um concessionário via leilão.”
Segundo Abate, o incentivo às parcerias público-privadas, criado através do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) – em que foram definidos oito projetos, cinco renovações de contratos de concessões de carga e três leilões –, precisa ser mantido e melhorado, de forma que o país tenha ativos atraentes, segurança jurídica de contratos de longo prazo e retorno do investimento dentro do prazo estipulado.
“Sem essas garantias, estaremos fadados a ver uma estagnação do tão sonhado crescimento da infraestrutura nacional”, diz ele.
De acordo com o dirigente da Abifer, o Brasil tem a oportunidade de aumentar a malha ferroviária para 40 mil km até 2035, chegando próximo ao que já houve antes. “Ainda não é o suficiente, mas já é uma extensão significativa e que ajudará o desenvolvimento dos estados, gerando elevação na receita do país”, acentua.
PASSAGEIROS
Segundo a Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), a rede metroferroviária brasileira atual conta com 1.105 km de extensão em linhas de metrô, trens urbanos e Veículos Leves sobre Trilhos (VLT), contabilizando 21 sistemas, distribuídos por 11 estados e Distrito Federal.
Para Roberta Marchesi, diretora executiva da entidade, essa extensão cobre menos de 50% do território nacional. “Hoje, o Brasil tem mais projetos por executar do que sistemas em operação”, ela ressalta. “Isso é um indício de que precisamos avançar com as políticas públicas setoriais, buscando alavancar o desenvolvimento do setor.”
Nesse sentido, a ANPTrilhos fez um levantamento que mapeou mais de 3 mil km de projetos de transporte de passageiros sobre trilhos em todo o Brasil. Distribuídos em mais de 70 trechos, incluem metrôs, trens urbanos, VLTs, trens regionais e inter-regionais.
“Os projetos mapeados representam três vezes mais que a extensão dos sistemas em operação”, afirma Marchesi. “Para que esses trechos possam ser concretizados é necessário que políticas públicas eficientes sejam implementadas pelo poder público.”
De acordo com ela, no setor metroferroviário também existe a tendência de se fazer da parceria privada um agente indutor de desenvolvimento. Neste setor, sublinha, a demanda por investimento e transporte tem gerado uma atratividade crescente para o ente privado, o que é evidenciado pelo volume de interessados em processos de concessões e Parcerias Público-Privadas (PPP).
Dados da ANPTrilhos revelam que atualmente o setor metroferroviário nacional conta com 56% de participação privada, mas com o novo Marco Legal do Transporte Público Coletivo – que busca reestruturar o modelo de prestação de serviços – será possível ampliar essa representação para 75% em apenas cinco anos.
Para isso, destaca Marchesi, devem ser levadas em conta questões de financiamento de custeio e de investimentos em infraestrutura, assim como qualidade, produtividade e regulação de contratos, garantindo maior segurança jurídica e participação da União no papel de indutora da política nacional de mobilidade urbana.
“Um transporte por PPP e concessão não elimina a participação do poder público”, aponta. “Pelo contrário, força que o poder público se concentre na regulação e fiscalização, que é fundamental para os bons resultados das parcerias.”
Outra reinvindicação do setor é a volta dos trens regionais de passageiros, conforme aponta Abate, da Abifer. Recentemente, foi anunciada a publicação do edital do Trem Intercidades São Paulo-Campinas (TIC Norte), ainda no 1º semestre de 2023, segundo previsão da Secretaria de Parceria em Investimentos, nova pasta criada pelo governo de São Paulo.
O projeto consiste em um trem de alta velocidade que fará a ligação direta entre as cidades. De acordo com a secretaria, o investimento estimado para a implantação é de R$ 10 bilhões, com aporte do governo de R$ 7 bilhões. “O Trem Intercidades vem para agregar a malha ferroviária de passageiros, sendo uma alternativa para sair das grandes metrópoles”, comenta Abate.
Revista Mercado & Tecnologia – Edição Março/23