No século 21, o grande desafio das cidades brasileiras é dar prioridade aos pedestres e transporte público
A ideia de cidade para as pessoas parece óbvia em um primeiro momento. Afinal, de quem seria a cidade senão de seus habitantes? A resposta se divide entre o que os centros urbanos são e aquilo que deveriam ser, segundo especialistas. Os espaços públicos nas capitais do Brasil são arenas de constantes disputas entre carros, pedestres, bicicletas e o transporte público. Como resultado dessa tensão, a mobilidade urbana se tornou um dos assuntos prioritários na discussão da cidadania e pode até ser tema de redação no Enem 2017, levando as conversas sobre o tema a outro nível.
s desafios da mobilidade no país são vividos diariamente pela sociedade na forma de calçadas impróprias, ciclovias mal planejadas, distâncias muito longas, integrações ineficientes, quilômetros de engarrafamento e horas diárias no trânsito. Isso tudo resulta em estatísticas impressionantes – em 2016, a população da área metropolitana do Rio de Janeiro foi a quarta no mundo a perder mais tempo no trânsito, cerca de 165 horas, segundo estudo da organização holandesa TomTom.
— Quando se fala em mobilidade urbana, o que está em jogo é o planejamento das cidades. O século 20 estabeleceu o automóvel como principal meio de transporte pela conveniência. Os carros ganharam espaço demais e acabaram se tornando uma espécie de praga urbana. A questão é como mudar essa cultura e construir uma infraestrutura capaz de suprir milhões de viagens diárias com uso de BRT, VLT, metrô, trem, ônibus e ciclovias — pontua Marcos de Sousa, diretor de jornalismo do portal Mobilize Brasil.
A urbanização acelerada do Brasil nos últimos 50 anos e o enorme tamanho das áreas urbanas, como Grande São Paulo e Grande Rio de Janeiro, pedem por novas formas de mobilidade urbana, segundo Carlos Eduardo Nunes-Ferreira, especialista no assunto e pró-reitor de graduação na Universidade Veiga de Almeida (UVA).
— A mobilidade no país está ligada à desigualdade social, onde as diversas classes dispõem de modelos de cidade e transportes também diferenciados. É comum ver ciclovias ocupadas por trabalhadores em dias úteis. Já para as classes altas, a bicicleta se apresenta como opção de lazer. Aproximar os dois usos para toda a população é um desafio porque inclui investimentos na qualificação de espaços urbanos e não apenas ciclovias. Alguém já disse que uma boa cidade não é onde o pobre anda de carro, mas aquela em que o rico anda de ônibus — pondera Carlos Eduardo.
Prazo para cumprir a lei estendido
As dificuldades vividas por pedestres no cotidiano foram um dos impulsos para a criação da Lei nº 12.587/2012, que tem o objetivo de melhorar a mobilidade nas grandes cidades do Brasil. O projeto de 2012 deu início às diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, com prioridade a meios de transporte não motorizados e ao serviço público coletivo.
A partir daí, o governo federal definiu como dever dos municípios o controle do acesso e restrição de veículos motorizados individuais em locais e horários determinados, padrões de emissão de poluentes e a possibilidade de cobrança pela utilização da infraestrutura urbana. A ideia sempre foi desestimular o uso de meios de transporte individuais e favorecer o sistema coletivo.
A pena prevista para os municípios que não cumprissem a lei incluía a suspensão dos repasses federais destinados a políticas de mobilidade urbana. No entanto, a legislação foi alterada em 2016 com uma extensão do prazo de adequação das cidades ao plano para seis anos. Assim, a efetivação do projeto deve demorar mais alguns anos
Adesão ao transporte coletivo
Em outra campanha do Mobilize, foi revelado que os ciclistas também sentem o impacto de cidades voltadas para carros individuais. São Paulo, Rio e Brasília são as únicas capitais com mais de 200 km de ciclovias na malha de transporte. Ao mesmo tempo, somente cariocas e paulistas têm mais de 80 km de trilhos urbanos, incluindo VLTs, metrôs e trens.
Para Marcos de Souza, a adesão da sociedade ao transporte coletivo ou alternativo ainda esbarra na falta de investimentos públicos. O especialista não enxerga a mobilidade no Brasil como apenas uma questão cultural. Segundo Marcos, mais pessoas vão usar o transporte público quando as condições forem mais confortáveis para ciclistas, pedestres, ônibus, trens e metrôs do que para automóveis individuais.
— Com pessoas indo trabalhar todos os dias de carro, qualquer nova pista na cidade logo se enche de veículos. É preciso evitar grandes viagens com novos modelos de cidade, criando pequenos centros para morar, se divertir, estudar e trabalhar. Além disso, estimular deslocamentos de baixo impacto ambiental. Para mudar essa cultura, também é preciso surgir uma infraestrutura capaz de cumprir as necessidades de mobilidade no Brasil, ou seja, deixar de investir prioritariamente em asfalto e criar mais linhas de ônibus, ciclovias e trens — garante o diretor de jornalismo da Mobilize.
Enquanto a sociedade e o estado pensam no futuro da mobilidade urbana no Brasil, alguns grupos já contribuem com soluções em menor escala, como sistemas de caronas, aplicativos de carro executivo e ativismo de ciclistas. Nesse contexto, Carlos Eduardo Nunes-Ferreira também acredita que uma transformação na infraestrutura do trânsito é o primeiro passo para mudanças nos hábitos dos motoristas:
— O objetivo deve ser tornar mais agradável, rápido e seguro utilizar o transporte público do que meios privados de circulação. As pessoas vão ter mais tempo para usufruir a cidade, longe dos engarrafamentos e sem os custos de manter um veículo. Desestimular o uso do carro particular é importante, mas as duas mudanças têm que vir juntas: a melhoria do transporte público e as políticas de inibição do automóvel em áreas centrais.
Pontos importantes na mobilidade
Com a mobilidade urbana como possível tema de redação no Enem, o pró-reitor da UVA lembra aos estudantes alguns tópicos relacionados ao assunto que não devem ser ignorados. De acordo com Carlos Eduardo, é fundamental que eles percebam a boa mobilidade urbana como fruto de políticas de estado.
— No Brasil, vai ser necessário investir fortemente em estrutura para metrôs, ônibus articulados em vias exclusivas e redes inteligentes de integração, para melhorar a qualidade dos meios de transporte intermodais. Essa mudança aumenta a qualidade de vida dos usuários atuais, e ainda quebra o hábito das classes altas com o uso de automóvel particular — argumenta Carlos.
As soluções apontadas por Carlos Eduardo ganham ainda mais destaque com o formato da redação do Enem em vista. Segundo Romulo Bolivar, professor de Redação e Língua Portuguesa no curso ProEnem, a organização da prova tem a tradição de cobrar intervenções criativas para problemas sociais.
— Vejo mobilidade urbana e qualidade de vida no Brasil como um dos prováveis temas de redação do Enem 2017. No entanto, mais importante do que tentar adivinhar o tema é conhecer o perfil dos temas que caem no Exame Nacional do Ensino Médio, que é sempre social, atual e relacionado à realidade do nosso país — conclui Romulo.