Em 2018, o BNDES firmou um acordo de cooperação com o banco de fomento alemão KfW e a Agência Francesa de Desenvolvimento, com o objetivo de financiar estudos de pré-viabilidade na área de mobilidade urbana. A ideia era ter um filtro, uma avaliação prévia para saber as chances de sucesso de uma eventual estruturação do projeto analisado. Os consultores contratados para essa ação saíram pelo Brasil em busca de projetos para fazer esses estudos. Não os encontraram. O que havia nos estados e municípios não tinha substância nem para passar por esse teste de viabilidade.
Técnicos do banco, então, decidiram dar um passo atrás. Foi assim que surgiu o Estudo Nacional de Mobilidade Urbana, capitaneado pelo BNDES, que deverá trazer um mapeamento dos projetos estruturantes de mobilidade (focados em modais de média e alta capacidades) em 21 regiões metropolitanas espalhadas de Norte a Sul do país. O estudo é pioneiro não só por ter o objetivo de identificar as soluções para melhorar o deslocamento em cada uma dessas regiões, mas também por apontar o caminho econômico-financeiro para transformar essas soluções em realidade.
“Não temos intenção de dizer para o gestor público o que ele deve fazer, mas a gente quer ajudá-lo na tomada de decisão, ponderando o custo, o quanto ele vai ter que colocar de subsídio naquele projeto versus o benefício que vai trazer em termos social e ambiental. Queremos fazer um levantamento dos projetos e ajudar na priorização deles”, afirma Felipe Borim, superintendente da Área de Infraestrutura do BNDES.
Formado em Economia pela Universidade de São Paulo e mestre em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas, Borim tem longa experiência em diversos setores de infraestrutura, em instituições públicas e privadas. Entre outras funções, foi diretor de Transportes e Logística das primeiras versões do PAC (Programa de Aceleração de Crescimento), no Ministério do Planejamento, e assessor especial para Infraestrutura na Casa Civil da Presidência da República. Nessa trajetória viu alguns setores serem transformados a partir de estudos setoriais feitos pelo BNDES, a exemplo do que será realizado agora para mobilidade urbana.
No setor aeroportuário, o diagnóstico setorial do banco ajudou a montar as bases para concessão de aeroportos. Em 2012, o BNDES fez um estudo que contribuiu para a Lei dos Portos, promulgada em 2013. Nessa legislação, a questão dos Terminais de Uso Privado, os chamados TUPs, foi regulamentada, trazendo uma transformação para o setor e para os fluxos (principalmente agrícolas) na região Norte do país. “Nosso objetivo com o estudo de mobilidade é bem ambicioso. Não é só fazer o mapeamento desses projetos, mas também trazer as bases para um Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que realmente possa gerar alguma transformação no setor”, vaticina Borim.
Enquanto os resultados desse estudo não chegam, o BNDES segue avaliando novos desembolsos para o setor metroferroviário. Estão na lista o Trem Intercidades São Paulo-Campinas e o projeto de expansão da Linha 2-Verde do Metrô de São Paulo, numa negociação ampla com o governo do estado. No segmento de cargas, as conversas estão sendo feitas com a Bamin, que tenta montar uma estruturação financeira para o projeto de ferrovia (Fiol 1) e porto que pretende implementar em Ilhéus, na Bahia. Entre as concessionárias, a Rumo recebeu recentemente recursos da ordem de R$ 600 milhões para renovação da via e frota nas malhas que opera.
“O que nos motivou a estruturar um estudo setorial amplo sobre mobilidade urbana foi a carência de projetos estruturantes.”
Felipe Borim – Superintendente da Área de Infraestrutura do BNDES
Revista Ferroviária – Qual o maior desafio na estruturação de projetos de mobilidade urbana?
Felipe Borim – Temos algumas questões-chaves. A primeira delas é justamente o que nos motivou a estruturar um estudo setorial amplo sobre mobilidade urbana, que é a carência de projetos estruturantes, de mapeamento de projetos nas grandes regiões metropolitanas. Fizemos parcerias com alguns organismos multilaterais nos últimos anos, para estruturar projetos de mobilidade. Fomos tentar nos aproximar dos municípios, das grandes regiões metropolitanas e ver quais seriam esses projetos e encontramos um problema anterior, que era a falta de um mapeamento de projetos estruturantes. As próprias regiões metropolitanas não tinham esse mapeamento.
RF – Foi como dar um passo atrás para resolver esse gargalo…
FB – Sim. Estamos agora no processo de contratação de consultores para fazer um estudo setorial de mobilidade urbana, que estamos chamando de Estudo Nacional de Mobilidade Urbana nas 21 principais regiões metropolitanas, para identificar quais seriam esses projetos estruturantes. Uma das razões para essa falta de projetos é o valor do investimento, que é muito elevado. Muitas vezes, o gestor público não tem nem a ousadia de fazer ou de pensar num projeto muito grande, porque ele sabe que a realidade fiscal daquele estado ou município não vai permitir tirá-lo do papel.
RF – Falta capacidade técnica também?
FB – É possível terceirizar a capacidade técnica, ou seja, contratar consultorias para fazerem a estruturação. Muitas vezes é um modelo de risco, um contrato que, na verdade, o estruturador só é remunerado no sucesso. Esse é o próprio modelo de remuneração daqui do banco também. E a gente se pergunta: por que não existem esses projetos? Porque os entes públicos têm dificuldade tanto financeira quanto de gestão de contratar e executar esses projetos. Acho que com esse estudo nacional de mobilidade vamos conseguir ter uma visão clara de quais são os projetos prioritários em cada uma das regiões.
RF – Esse estudo vai conter o que exatamente?
FB – O estudo vai fazer um mapeamento da demanda nos municípios, entender os fluxos de transporte em cada um e tentar identificar qual é a melhor solução. Se é um VLT, se é um metrô, se é a construção de um BRT. Pensando no longo prazo, uma solução estrutural para o problema de mobilidade naqueles municípios. Temos métricas para isso. Uma que se trabalha muito é a estimativa de que são necessários R$ 360 bilhões em investimentos nos próximos dez anos em mobilidade, para resolver a questão nas principais regiões metropolitanas.
RF – Como foi o processo de escolha dessas regiões?
FB – O critério foi o que chamamos de conglomerados urbanos. Não necessariamente uma região metropolitana. Conurbações com população superior a 1 milhão de habitantes. Separamos esse estudo em fases. Nessa primeira, pegamos conurbações com mais de 1 milhão de habitantes, o que resultou nas 21. Conurbações no sentido de cidades em que você não enxerga o limite entre elas. Cidades que são totalmente integradas, não necessariamente uma região metropolitana, mas se existie um grupo de três cidades que você não consegue distinguir quem é quem, é como se você tivesse uma cidade de mais de 1 milhão de habitantes. Esse foi o critério. Podemos ter, futuramente, uma segunda etapa para pegar as cidades menores, com menos de 1 milhão de habitantes, que também precisam de investimento em mobilidade.
RF – Essas 21 conurbações foram escolhidas de Norte a Sul do país?
FB – Sim. Foi uma preocupação nossa não ficar concentrado no Sudeste. A gente conseguiu pegar praticamente todas as capitais, só algumas menores na região Norte ficaram de fora. Foram incluídas as regiões metropolitanas de Belém, Belo Horizonte, Campinas, Curitiba, Distrito Federal, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Baixada Santista, São Luís, São Paulo, Teresina e Vitória.
RF – Que parcerias o BNDES firmou para fazer esse estudo?
FB – Fizemos com a ANPTrilhos, com o Ministério das Cidades, que é a principal, e com várias associações de todo o setor. A ANPTrilhos, inclusive, nos entregou uma lista de projetos metroferroviários que ela própria mapeou.
RF – E qual é o histórico do banco com esse tipo de estudo?
FB – Já fizemos estudos que mudaram a estrutura de alguns setores. O primeiro deles foi no setor de aeroportos. Depois da crise aérea de 2007, o banco fez um diagnóstico setorial em que foi mapeada a solução de concessão de aeroportos. Essas concessões começaram a ser feitas a partir dos resultados desse estudo setorial do banco. Isso vai muito na linha do que queremos fazer com a mobilidade, que é um grande diagnóstico e um plano nacional para o setor.
RF – Outro setor além do aeroportuário foi contemplado?
FB – Fizemos um diagnóstico sobre o setor portuário, em 2012. Esse estudo contribuiu para a Lei dos Portos, que acabou sendo promulgada em 2013 e deu base para os arrendamentos portuários, que também trouxeram uma transformação para o setor. A questão dos Terminais de Uso Privado, que foi regulamentada, transformou o setor portuário. O nosso objetivo é realmente bem ambicioso. Não é só fazer o mapeamento desses projetos, mas também trazer as bases para um Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que realmente possa gerar alguma transformação no setor. E nosso foco é, por enquanto, somente no transporte de média e alta capacidade.
RF – E com relação à estruturação financeira dos projetos? O estudo pretende abordar isso também?
FB – Sim, o objetivo é justamente fornecer soluções. A questão do orçamento é um gargalo. Como bancar esses projetos estruturantes de média e alta capacidades, que são caros. Um dos objetivos do estudo é ter essa dimensão do quanto é necessário e dar o caminho de como montar uma estrutura econômico-financeira que viabilize esses projetos. E certamente esses projetos dificilmente são viabilizados sem algum tipo de participação pública, de orçamento, eventualmente uma participação federal.
RF – O estudo então deve ajudar na tomada de decisão do gestor público?
FB – Dada a escassez de recursos dos estados e municípios, a ideia é tentar também ponderar o benefício daquele projeto em relação ao custo dele. Não temos intenção de dizer para o gestor público o que ele deve fazer, mas a gente quer ajudá-lo na tomada de decisão, ponderando o custo, o quanto ele vai ter que colocar de subsídio naquele projeto versus o benefício que vai trazer em termos social, ambiental. Queremos fazer um levantamento dos projetos e ajudar na priorização deles.
RF – E quais são os prazos de elaboração desse estudo?
FB – Estamos em contratação dos consultores. A ideia é ter isso fechado nos próximos meses e o estudo concluído até o fim do ano que vem. O Ministério das Cidades certamente vai liderar o processo todo, como foi nos outros estudos, em que atuamos como um braço do governo federal. Os municípios envolvidos também vão participar. O objetivo é de ser totalmente público e ter discussão com a sociedade também. E para tirar do papel, será preciso outras ações, eventualmente um recurso do orçamento federal, do Novo PAC…O ideal é que no momento em que o estudo for divulgado, já exista minimamente uma solução casada.
RF – O que se espera com ele?
FB – A expectativa é conseguir, de fato, viabilizar projetos estruturantes, que mudem completamente a vida das pessoas. Ajudar a montar essa estratégia nacional de mobilidade, que é uma coisa mais estrutural do governo federal, em conjunto com os estados e que envolva uma política mais ampla.
RF – E o BNDES poderá ajudar em termos de financiamento?
FB – Ah, sim, certamente. Para projetos estruturantes, com investimento muito alto, prazo longo e risco de construção, como uma linha de metrô, acho que não tem nem muita opção. A gente tem entrado nesses projetos e trazido outros bancos, mas que dificilmente entram sem o BNDES.
RF – Quais são as linhas de crédito voltadas para mobilidade?
FB – Finem é o mais tradicional para crédito bancário direto. Mas nos projetos mais recentes, temos atuado com vários instrumentos. Por exemplo, a Linha 6-Laranja, do metrô de São Paulo, que aprovamos em 2021, foi um projeto extremamente complexo. A construção de uma linha de metrô greenfield. Existe um risco muito grande.
RF – Como foi a modelagem financeira desse projeto?
FB – Entramos com uma boa parte do Finem, outra parte com debêntures que o BNDES ancorou e viabilizou a emissão. Organismos multilaterais e outros bancos entraram com fiança. Ao todo, 11 instituições estão no financiamento. É esse tipo de abordagem que estamos tentando fazer nesses projetos complexos de grande impacto. Trazemos o mercado, organismos multilaterais e montamos uma operação estruturada e complexa, com vários tipos de instrumentos.
RF – Qual foi o volume de recursos para a Linha 6?
FB – Foram cerca de R$ 7 bilhões para o privado (Acciona) e R$ 3 bilhões para o governo do estado. Isso mostra a nossa capacidade de financiamento. Temos fôlego, só não há projetos.
RF – São Paulo responde pela maior parte dos recursos financiados para mobilidade urbana?
FB – São Paulo, tanto estado quanto município, é um dos entes mais bem estruturados para esse tipo de planejamento de longo prazo. Há um plano de longo prazo historicamente bem estruturado e, de fato, temos outros financiamentos com eles. Temos a Linha 6 e as linhas 8 e 9 dos trens metropolitanos, que a gente aprovou no final do ano passado para a ViaMobilidade.
RF – Para a compra de trens?
FB – Sim. Renovação de material rodante e de via e ampliação de estações também.
RF – Qual valor?
FB – Foram R$ 4,6 bilhões. Do valor total do apoio, R$ 2,5 bilhões serão liberados na forma de emissão de debêntures de infraestrutura sustentáveis, R$ 850 milhões como BNDES (Finem) e R$ 1,25 bilhão na forma de um subcrédito backstop (garantia para cobrir financiamentos futuros). A operação foi estruturada na modalidade project finance, em que as principais garantias são relativas ao próprio projeto e não pesam sobre os ativos da empresa.
RF – E como estão as negociações para o TIC São Paulo-Campinas?
FB – São Paulo está com edital do TIC publicado, que é um projeto gigante. Acho que o BNDES é necessário nesse projeto. Risco de capex muito grande, entrou no Novo PAC e tem toda a condição de entrarmos nesse financiamento, mas não há nada concreto. É natural, que os interessados no leilão nos procurem. A gente se coloca à disposição para eles nos procurarem, para falarmos das linhas de financiamento. É um trabalho que fazemos rotineiramente quando há leilões. Faz parte do DNA do banco financiar esse tipo de projeto. Dificilmente um player vai entrar num projeto desses sem contar com o BNDES, porque é um volume grande de investimento, de longo prazo, com risco de construção elevado.
RF – Vai ter financiamento para o público e privado?
FB – Sim, podemos financiar o aporte público também. Não há nada concreto, mas é uma possibilidade. Costumamos fazer isso neste tipo de projeto, como foi na Linha 6, por exemplo.
RF – A questão da demanda influencia também no risco do financiamento? Como isso é trabalhado?
FB – Nesse tipo de situação, avaliamos o edital e colocamos nas conversas com os players as possibilidades de financiamento com base na avaliação que ele faz e nas condições do edital. O projeto é muito meritório. Não temos muito como passar um diagnóstico dele. Acho que nem é o nosso papel institucional fazer uma análise pública do edital e do contrato, mas a gente entende que é um projeto que tem todas as condições para ser bem-sucedido.
RF – E a Linha 2-Verde do Metrô de São Paulo?
FB – Para a Linha 2-Verde do Metrô de São Paulo, também existe a possibilidade. É um tipo de projeto que os entes costumam nos procurar, mas também não há nada concreto. A gente tem conversado com o estado sobre esses financiamentos…
RF – Podemos dizer que o modelo de project finance é uma tendência na mobilidade urbana?
FB – Aperfeiçoamos muito as políticas de project finance no banco e atualmente acho que estamos no estado da arte deste modelo no Brasil. Podemos falar isso com tranquilidade. O project finance é um tipo de financiamento em que buscamos usar, no máximo possível, as garantias do projeto sem precisar ter fiança bancária. O principal é não ser necessário o acionista dar garantias. Isso é muito difícil, porque há normalmente um risco de construção muito elevado e até terminar aquela construção, existe um risco grande de o projeto quebrar. Isso aconteceu, por exemplo, com a Linha 6 antes da mudança para Acciona. Sempre houve uma demanda muito grande para o BNDES conseguir fazer esses financiamentos sem pegar recurso do acionista.
RF – Como isso foi possível?
FB – Fomos aperfeiçoando nossa política de crédito e, atualmente, com esses instrumentos que eu mencionei, a gente sempre busca ter uma abordagem de project finance e tentar fazer o menor recurso possível ao balanço do acionista. Na Linha 6 é um caso em que isso foi muito bem-sucedido, porque é inteiro com garantias do próprio projeto. Não tem recurso ao balanço dos acionistas para o projeto em si. Por exemplo, mesmo as fianças bancárias que tomamos, metade do risco de construção está diretamente com a gente e a outra metade está com outros bancos. E esses bancos deram fiança para a gente, mas eles não tomaram garantia dos acionistas. Eles pegam só as garantias de projeto. Mas não é todo projeto em que isso é possível.
RF – Por quê?
FB – Isso foi possível porque se montou um contrato de construção de EPC, que é uma sigla de Engineering, Procurement and Construction. Nesse contrato, todo o pacote da construção é fechado por um preço. A equipe do BNDES fez um trabalho muito grande de detalhar esse contrato de construção e alocar muito bem os riscos. Esse é até um projeto que o pessoal ganhou prêmio, virou meio que referência no banco. Esse trabalho foi muito bem-feito.
RF – Que outros projetos estão dentro desse modelo?
FB – Praticamente todos atualmente fizemos por esse modelo de project finance. É que o da Linha 6 foi muito emblemático, porque é um projeto com um risco de construção muito grande, porque é uma linha de metrô nova, que a gente conseguiu fazer “non-recourse” de maneira ampla, com fiança de outros bancos, mas os bancos não pegam fiança do acionista, eles pegam fiança do projeto. São as garantias de projeto que são os recebíveis futuros.
RF – Quais são os critérios para se conseguir aprovar um projeto nessa modelagem?
FB – Existem alguns pontos. Um projeto bem estruturado é fundamental, com uma uma matriz de riscos clara entre o privado e o público e com os riscos bem alocados. Uma matriz que funcione bem, que deixe os riscos claros e que o privado possa gerenciar. Além disso, acho que essa questão da construção é fundamental, ou seja, ter um contrato de construção em que se consiga alocar os riscos de construção na construtora. A construtora tenha fôlego para isso e esses riscos também estejam bem alocados e a preço fechado. Tem que ter uma segurança no preço e garantia de que a construtora conseguirá bancar mesmo num cenário de aumento desses preços. No project finance, todo mundo está compartilhando risco, inclusive a construtora.
RF – Sim…
FB – No fim das contas, essa qualidade do projeto, dos estudos, do detalhamento do que acontece num cenário ruim, em que há aumento de custo ou algum problema geológico, esses riscos estarem bem alocados em instituições que consigam fazer frente a eles, acho que é o fundamental. Tendo isso redondo e bem colocado, a gente consegue se aproximar mais do project finance non- recourse.
RF – E o risco da demanda? Esses projetos são baseados na garantia de fluxo de caixa que se dá através da quantidade de passageiros transportados. Como foi equacionar isso depois da pandemia, que trouxe uma queda vertiginosa de usuários nos sistemas, até hoje não recuperada plenamente?
FB – Isso está dentro dessa alocação de riscos. Fazer um projeto desses e deixar essa demanda inteira alocada no privado é um risco muito grande que ele provavelmente não vai conseguir suportar, porque é uma coisa que não se tem muito controle. Uma coisa que ajuda muito é ter algum tipo de compartilhamento de risco de demanda com o estado. Os projetos têm ido muito para esse caminho, até depois do que aconteceu nos últimos anos, e isso varia muito de projeto para projeto. Mas existe também um histórico dessa demanda, quando há uma infraestrutura já existente, também é uma coisa que ajuda muito no sentido de ter uma previsão futura com mais certeza.
RF – Esse ponto depende de o poder concedente conseguir honrar o contrato, certo?
FB – Sim. Um ponto é o histórico do poder concedente em honrar esses contratos quando for necessário, em outros contratos. Ele fez a parte dele? Cumpriu? Então, isso também é avaliado numa estrutura de project finance, que é o risco público, que a maior parte das vezes, a gente está falando de PPP (Parceria Público-Privada). Se o público não fizer a parte dele…
RF – Aí entra na seara da insegurança jurídica…
FB – Buscamos ter uma abordagem de longo prazo. O Estudo Nacional de Mobilidade é uma visão de longo prazo, de planejamento, mapear estudos, depois estruturar, tem um prazo de maturação longo, que até nesses outros estudos que eu mencionei de aeroportos e portos, foi um pouco isso. É um processo que leva anos até se materializar e mudar o setor. Acho que o Brasil vem num processo de décadas de aperfeiçoamento institucional. Esse tipo de projeto com o setor privado vem nos últimos 20, 30 anos, se aperfeiçoando. Os projetos e contratos estão ficando melhores, questões regulatórias estão sendo aperfeiçoadas, estamos num ciclo histórico de aperfeiçoamento desses contratos, que está permitindo chegar, por exemplo, num projeto como esse da Linha 6, que é muito sofisticado, que há dez anos atrás acho que seria difícil de imaginar.
RF – Que projetos de mobilidade estão sendo estudados/estruturados atualmente pelo BNDES?
FB – Temos acordos de cooperação com a Agência Francesa de Desenvolvimento e com o banco Alemão, KFW, que firmamos em 2018. Esses acordos têm o objetivo de financiar o que a gente chama de estudos de pré-viabilidade. Justamente pela dificuldade da viabilidade financeira de projetos de mobilidade urbana, é recomendado que você faça um estudo pré-estruturação dele, que é muito mais barato que o estudo de estruturação. São feitos alguns testes que fazem com que aquela estruturação de projeto tenha uma chance maior de sucesso. Eu só vou estruturar o projeto que passa por esse teste, porque a chance de ele dar certo é maior. É um filtro que fazemos. No âmbito desses estudos temos seis projetos em andamento.
RF – Que projetos são esses?
FB – Temos os estudos para a desestatização dos sistemas da CBTU Recife, Natal, Maceió e João Pessoa. O de Recife é o primeiro na fila de prioridades. Temos o VLT do Paraná, que inclui a contratação de consultores para a realização de estudos técnicos e de realização de leilão para concessão. Temos três projetos de estruturação de concessões das linhas 11, 12 e 13, 10 e 14 da CPTM, atém do Trem Intercidades até Sorocaba. E temos a realização de estudos técnicos para a conversão dos corredores de BRT em linhas de VLT no Rio.
RF – No segmento de carga, o que há atualmente na carteira do banco?
FB – No ano passado, aprovamos uma operação para a Rumo, de R$ 686 milhões, de apoio ao plano de investimentos do grupo a projetos de melhoria de via, construção de novos pátios de cruzamento, duplicação de linha, reestruturação, aquisição e modernização de material rodante. Os desembolsos para transporte ferroviário de carga desde 2009 foram de R$ 28,5 bilhões. Em 2023, estão previstos desembolsos de R$ 1,8 bilhão para o segmento. Vemos que Rumo, VLI, MRS emitem debêntures a mercado para investimentos corriqueiros. Para alguns projetos específicos, como esse da Rumo, que tem um fôlego maior, uma necessidade maior de capex, elas nos procuram e faz sentido entrarmos.
RF – E a Fiol 1, que está em obras de conclusão pela Bamin?
FB – Estamos conversando com eles. É uma operação em análise. Elas têm um prazo de maturação porque são muito complexas, envolvem vários instrumentos e instituições. Mas é o tipo de operação que o BNDES apoia historicamente. Assinamos com eles um memorando de condições gerais, sinalizando para a empresa alguns parâmetros de financiamento.
12/09/2023 – Revista Ferroviária – Entrevista Edição Julho/Agosto – 2023