Se eu perder esse trem…
Ela solta fumaça como se fumasse charuto. Logo depois, a buzina rouca é ouvida pela Estação da Luz. Ele olha pela janela e sente como se a plataforma se movimentasse, enquanto se preocupa com manivelas, ponteiros, plugues e botões do painel.
Ela abocanha os trilhos, sonhando em chegar aos 104 km/h de que é capaz -mesmo com mais de 65 anos de idade e puxando dois vagões de aço cheios de passageiros. Ele estabiliza a velocidade e limpa o suor que insiste em escorrer por causa do ar-condicionado quebrado e do excesso de roupa, que inclui protetor auricular, capacete, óculos, colete e caneleira contra animais peçonhentos.
Ela é uma locomotiva Alco RS-3, movida a diesel e nascida em 1952. Ele, o maquinista: Roosevelt Louro.
Homem e máquina se misturam nas duas horas até Paranapiacaba, vila histórica de Santo André (SP). Mas o nome impresso no crachá do funcionário da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) fala mais sobre plataformas do que sobre locomotivas.
O ferroviário de 43 anos recebeu esse nome do pai, em homenagem à antiga estação Roosevelt -chamada assim até 1994, quando foi rebatizada de Brás. “Meu apelido virou Brás no trabalho”, diz o maquinista, na empresa há 21 anos. “Colegas brincam que tenho um irmão chamado Francisco Morato”, comenta, referindo-se a outra estação da rede.
Mas seria plausível. Filho de um antigo supervisor de almoxarifado da companhia e neto de um imigrante português que trocava trilhos, Roosevelt faz parte de uma família que se mistura à história da malha ferroviária da cidade. Ainda hoje, tios, irmãos e primos trabalham no dia a dia da rede estadual.
A relação não desaparece nem quando volta para casa, em Ribeirão Pires (SP). Em uma estante na sala, guarda cerca de 75 miniaturas de trens, além de relíquias relacionadas a sinalizações e maquinários. A mais preciosa, um lampião de 1920 que era usado para iluminar estações e vagões.
“Falou em locomotiva, falou comigo. Prefiro os trens antigos, sem nenhuma tecnologia. Só assim você consegue ter a máquina na mão”, conta.
Por isso, Roosevelt tenta guiar sempre que pode os comboios do Expresso Turístico. O serviço, que leva passageiros aos fins de semana para três destinos, é o único que conta com locomotiva dos anos 1950 e vagões dos 1960.
“É mais rústico, nada automático. É só você e os trilhos”, diz ele, que trabalha durante os demais dias nas linhas 7-Rubi e 10-Turquesa -nesses casos, os trens têm tração elétrica, o que evidentemente não tem a mínima graça, diria o ferroviário.
Ao chegar a Paranapiacaba, os passageiros posam para selfies na plataforma reformada e inaugurada no ano passado. Depois, empilham-se pela cidade histórica e por passeios que incluem trilhas, cachoeiras e mirantes. Essa é a hora mais triste para Roosevelt.
Não apenas porque a Alco RS-3 deixa de se movimentar e o vento já não entra pela cabine. Para evitar o pagamento de horas extras, a companhia busca maquinistas e auxiliares no meio da tarde. Para seus lugares, outros profissionais são levados e guiam a locomotiva de volta à Estação da Luz.
Roosevelt retorna antes. De carro.