A drástica redução no número de usuários de transporte público no Brasil torna necessária e irreversível a discussão de subsídios diretos ao setor, indica um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) antecipado ao Estadão/Broadcast.

Hoje, o modelo econômico adotado por grande parte das prefeituras joga todos os custos sobre a tarifa cobrada para os passageiros, o que tende a afastar ainda mais os usuários e criar uma bola de neve rumo ao colapso. O risco é comprometer cada vez mais a qualidade dos serviços prestados à população.

No momento em que municípios, Estados e a própria União enfrentam dificuldades financeiras, a discussão de subsídios é delicada. Um dos autores do estudo, o pesquisador Rafael Pereira, que é especialista em mobilidade urbana, reconhece que muitas vezes o debate em torno do tema é polarizado entre quem torce o nariz para a concessão de incentivos financeiros e quem defende tarifa zero — ou seja, custos integralmente bancados pelo poder público. A solução, porém, fica mais próxima do meio-termo.

“O grande debate não é se tem que ter subsídio ou não, mas qual o nível de subsídio que tem que ser dado. É 10%, 20%, 30%? Esse é o debate, e é um debate político, não técnico”, afirma. Em 2013, a alta no valor de tarifas de transporte público foi o estopim para uma série de manifestações que serviram de combustível para a crise política durante o governo Dilma Rousseff (PT).

A encruzilhada para o setor de transporte público não chegou da noite para o dia. Nos últimos 25 anos, assistiu-se a uma redução contínua no número médio de passageiros por dia, embora os custos tenham subido em ritmo até maior do que a inflação. Segundo os dados coletados pelo Ipea, a média diária de usuários de ônibus era de 631 mil em outubro de 1995 e caiu a 343 mil em outubro de 2019. O número considera nove capitais: Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

Por trás dessa queda está o aumento do poder de compra das famílias, na esteira dos ganhos reais de renda e da maior inserção de profissionais no mercado de trabalho. Com mais dinheiro no bolso, os brasileiros puderam trocar o transporte público pelo individual, adquirindo carros e motos. Entre 2001 e 2020, o aumento na frota desses veículos foi de 331%, segundo o Ipea. Subsídios e contenção de preços como o da gasolina também contribuíram para esse resultado.

A migração dos brasileiros do transporte público para o individual dilapidou a base de usuários sobre a qual os custos da operação são divididos, o que por si só a tarifa mais cara. O aumento para compensar a perda de passageiros acaba afastando ainda mais os usuários, criando um círculo vicioso rumo à insustentabilidade financeira. A pandemia “joga querosene e acende o fósforo” ao reduzir ainda mais o número de usuários sem que houvesse queda nos custos, afirma Pereira.

O pesquisador do Ipea diz que a rediscussão do modelo brasileiro iria na mesma direção das políticas já adotadas em outros países. “O Brasil está na contramão do que é feito em cidades dos Estados Unidos, da Europa, da Ásia. Nas grandes cidades de praticamente todos os países desses lugares, o transporte público tem um subsídio direto”, diz. Em Praga, o subsídio chega a corresponder a 74% da tarifa. Em Paris, o porcentual é menor, de 20%.

“Acho essencial e inevitável que a gente rediscuta no Brasil a quantidade de subsídio que é dada para o transporte público. Hoje a gente subsidia muito pouco”, afirma Pereira, para quem a redução no número de usuários é uma tendência irreversível. Ele lembra, porém, que ainda há uma parcela da população que tem no transporte público sua única opção de deslocamento e, portanto, merece uma prestação de serviço adequada.

A concessão de subsídios, porém, precisa ser acompanhada por uma rediscussão de todo o desenho de regulação e licitação, avalia o pesquisador. Segundo ele, é essencial prever contratos mais curtos, fazer licitações diferentes para a operação de veículos e das garagens e permitir uso de veículos menores. Também é importante evitar a reprodução de contratos duvidosos, com favorecimento a famílias que dominam o setor há décadas, como ocorre em alguns municípios. Tudo isso para que a concessão do subsídio seja eficiente e transparente.

Nas últimas semanas, a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP) tem se articulado para pedir ao governo federal um socorro para as empresas de transporte público nos municípios. Em 20 de julho, representantes do setor estiveram com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e defenderam um aporte de R$ 5 bilhões. A entidade também buscou apoio junto a outros ministros, mas ainda não houve definição.

Investimentos

A migração dos usuários do transporte público para o individual também tem repercussões ambientais e sobre o bem-estar da população em geral. Com custos elevados e sem usuários em número suficiente para bancar a operação, as empresas têm menor capacidade de fazer investimentos e renovar a frota. Ônibus mais velhos na rua apresentam maior risco de problemas, comprometendo a rotina de viagens, além de poluírem mais o meio ambiente.

De outro lado, o maior número de carros e motos em circulação aumenta os congestionamentos e também a emissão de gases poluentes. Por isso, o estudo do Ipea defende um cardápio de medidas para desencorajar a migração do transporte público para o individual ou cobrar dos usuários privados pelos transtornos causados, destinando o dinheiro para subsidiar a tarifa de ônibus.

Um exemplo de medida seria a cobrança de taxas de congestionamento, como já ocorre em Cingapura, Estocolmo e Londres. Pereira afirma que seria possível instalar câmeras nos pontos de entrada e saída das zonas de congestionamento, e sempre que um veículo é detectado no local nos horários de pico, uma cobrança é enviada ao seu proprietário, de forma semelhante como é feito hoje nas multas por velocidade.

Segundo ele, a discussão das taxas de congestionamento são quase inexistentes no Brasil porque o tema ainda é um “tabu” e extremamente impopular. Algumas cidades, como o Rio, discutem cobrar a taxa de veículos que atuam em plataformas de transporte, mas a política pode se mostrar inadequada por focar apenas em uma parte dos usuários privados.

Outras medidas possíveis seriam a ampliação do uso comercial de espaços, como fachadas de veículos e pontos de ônibus, e integração de estações com empreendimentos imobiliários — cujos aluguéis ajudariam a sustentar a operação do transporte público.

02/08/2021 – Estadão Conteúdo