No caminho da reinvenção para sobreviver no pós-pandemia do coronavírus, o transporte coletivo brasileiro terá que descer do trono, misturar-se e ser até permissivo com outros modos de transporte. Terá que se render não só à bicicleta, mas a outros atores da micromobilidade tão frequentemente menosprezados pelos ônibus, trens e metrôs. Está mais do que na hora de aliar-se a eles. Enxergar a mobilidade como um todo, formada por diferentes atores, cada um com um papel. Dar as mãos até mesmo aos aplicativos de transporte privado. Mais do que nunca, a intermodalidade é uma questão de sobrevivência. Esse é o recorte da terceira reportagem da série O Futuro do Transporte Público no Pós-pandemia, que vem sendo apresentada pela Coluna Mobilidade, e que faz um diagnóstico dos desafios a serem enfrentados pelo setor no próximo “novo normal”. A série evidencia a urgência de ações imediatas e também a longo prazo para garantir a sobrevivência dos sistemas de transporte coletivo público brasileiro.

O momento é de renovação e inovação, de pensar fora da caixa, de buscar parcerias por duas razões. A primeira é prática. Para tentar segurar o passageiro e atrair novos, conseguindo, ao menos, manter a demanda pré-pandemia. A segunda, pela imagem do serviço, Nunca o setor de transporte precisou tanto, tanto, do conceitual, de melhorar a forma como as cidades o vêem. A pandemia da covid-19 tem mostrado o quanto ele é necessário, mas se não houver uma modernização do serviço, que o faça ser mais acessível, rápido e confortável, será engolido pelo novo e – o que é mais temerário – pelo transporte clandestino e todos os perigos que ele representa.

A sobreposição e a competição entre os tipos de transporte de média e alta capacidade sempre foram comuns e a sociedade brasileira sempre aceitou isso. Mas agora, quando o pós-pandemia exige mudanças profundas de planejamento e gestão, não é mais aceitável. Essa é a oportunidade que temos de rever essas ineficiências”, João Gouveia, vice-presidente executivo da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos)

Estudiosos do setor defendem que é preciso pensar no usuário futuro, não entregar apenas para o usuário atual, como acontece. Atingir as pessoas dispostas a pedalar e a caminhar e que podem aliar esse hábito e vontade ao transporte de média e alta capacidade. Por isso a conexão com a bicicleta é tão importante. As duas edições do Perfil do Ciclista no Brasil (2015 e 2018) indicam que a maioria de quem pedala não faz integração com outros modais. Mais de 80%. No Recife, esse percentual chega a 89%. Muitos não integram por falta de opção que ofereça praticidade e segurança. Como uma ciclovia ou ciclofaixa que o leve a uma estação de metrô ou um terminal de ônibus, e um bicicletário acessível financeiramente e onde possa guardar sua bike com segurança.

O Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) defende que os deslocamentos em cidades grandes precisam ser vistos em cadeia, com integração intermodal, nos quais o transporte de público cumpre parte dos trechos. O restante pode e deve ser feito por modos ativos, por exemplo. Por isso a bicicleta é uma aliada no acesso ao transporte coletivo. Para o ITDP, sistemas de transporte de média e alta capacidade têm sido a forma mais utilizada para comportar os deslocamentos de grandes distâncias nas cidades, seja para trabalho ou lazer. Mas eles não são apropriados para deslocamentos mais curtos, além de não fornecerem serviços de porta-a-porta. É uma tarefa fundamental para tornar as cidades mais conectadas, justas e sustentáveis.

Para validar ainda mais a importância da integração com outros modais, principalmente os ativos, o ITDP vem monitorando o número de pessoas nas cidades que vivem próximas do sistema transporte estruturante por meio do indicador PNT (People Near Transit). O indicador PNT aponta o percentual da população do município ou cidade metropolitana que reside em um raio de até 1km de estações de transportes de média e alta capacidade, o que significa uma distância que pode ser percorrida a pé em 15 minutos. No Brasil, apenas 13% da população com renda mensal abaixo de um salário mínimo mora próximo a essa infraestrutura, enquanto 30% dos moradores com renda acima de três salários mínimos estão a 300 metros de uma rota segura para ciclistas. No Recife, esse percentual cai um pouco: 24%. Mas, mesmo assim, a intermodalidade segue sendo fundamental para a sobrevivência do transporte coletivo.

APLICATIVOS DE TRANSPORTE – DE INIMIGOS A ALIADOS

Entre os desafios para tentar reverter a situação de queda superior a 70% da demanda em todos os modais do transporte de média e alta capacidade está dar as mãos ao inimigo. Ou pelo menos aquele que era visto como inimigo até a pandemia: os aplicativos de transporte individual de passageiros – Uber e 99. Criar parcerias e estimular a integração física e tarifária com os apps, como o repasse de informações conjuntas e descontos para quem utiliza os dois modais integrados.

Algumas cidades já têm essas parcerias – o transporte da Região Metropolitana do Recife, infelizmente, sequer sonha. São Paulo e Rio de Janeiro são as principais. O transporte paulistano é o melhor exemplo. Desde novembro de 2019, o aplicativo da Uber disponibiliza informações do transporte público e privado na Região Metropolitana de São Paulo. Exibe informações sobre linhas de ônibus, metrô e trens, permitindo que o usuário compare as opções disponíveis e planeje viagens isoladas ou integradas. Com a 99, os clientes do serviço ganhavam desconto quando iniciavam as corridas a partir de determinadas estações de metrô da cidade.

No Rio de Janeiro, a iniciativa é com o MetrôRio. O sistema tem parceria com os aplicativos de transporte 99, Uber e com o serviço de compartilhamento de bicicletas públicas Bike Rio. Oferecem benefícios para os clientes que possuem cadastro no cartão Giro. No caso da 99 e do Uber, os clientes Giro recebem o cupom promocional ao fazerem uma recarga pelo app ou site a partir de R$ 25. No caso do Bike Rio, os clientes do MetrôRio podem liberar as bicicletas do aplicativo com o mesmo cartão. Algo semelhante ao uso dos cartões VEM Estudante, Trabalhador e Comum com o Bike PE.

COMBATE À INEFICIÊNCIA E ESTÍMULO À COMPLEMENTARIDADE

Além da urgência da intermodalidade, o combate à ineficiência operacional dos sistemas de transporte coletivo é fundamental. Quem alerta é o vice-presidente executivo da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), João Gouveia. “A sobreposição e a competição entre os tipos de transporte de média e alta capacidade sempre foram comuns e a sociedade brasileira sempre aceitou isso. Mas agora, quando o pós-pandemia exige mudanças profundas de planejamento e gestão, não é mais aceitável. Essa é a oportunidade que temos de rever essas ineficiências”, destaca.

O momento é de focar na complementaridade e de se abrir para o novo – a bicicleta, os patinetes e os aplicativos, por exemplo. “Cada um tem seu papel na mobilidade urbana. Tanto os transportes de alta capacidade como os de média e os que fazem a micromobilidade são fundamentais. Além disso, é preciso estar aberto ao novo porque os jovens de hoje não querem mais o deslocamento de carro ou de um único modal. Uma pesquisa recente da Folha de São Paulo mostrou que 84% dos jovens já usam os apps para complementar as viagens de transporte. Isso já é uma realidade. Temos que aproveitar essa lógica no pós-pandemia”, alerta João Gouveia, que atuou por mais de 15 anos na Supervia, o sistema de trens metropolitanos do Rio de Janeiro.

29/06/2020 – Jornal do Commércio