Por Nivaldo Vieira de Andrade Junior
Do bonde da Trilhos Urbanos, na Santo Amaro da Purificação do jovem Caetano Veloso, ao bonde do Barbalho, no qual, segundo Gilberto Gil, o anônimo rapaz pongava de um jeito inteligente, o transporte sobre trilhos vem contribuindo na construção e transformação das cidades brasileiras e, também, na conformação de sua memória coletiva urbana.
Os bondes implantados pelos ingleses no século 19 foram paulatinamente sendo substituídos por outros meios de transporte e sobreviveram, nas grandes metrópoles, apenas em situações muito específicas, como os bondes de Santa Teresa e do Corcovado, no Rio de Janeiro, ambos consagrados como passeios turísticos imperdíveis e, ao mesmo tempo, transformados – associados aos Arcos da Lapa e ao Cristo Redentor, respectivamente – em importantes cartões -postais da Cidade Maravilhosa. O metrô do Rio, construído a partir dos anos 1970, veio facilitar as conexões entre o centro, a Zona Norte, a Zona Sul e a Barra, e transporta hoje, diariamente, quase um milhão de passageiros. Mais recentemente, a implantação do VLT Carioca está contribuindo de forma inconteste para a requalificação urbana da área central do Rio e se tornando parte fundamental na constituição da nova imagem do centro carioca, junto com edifícios icônicos como o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá.
Em Salvador, o Plano Inclinado Gonçalves, instalado na década de 1880 e chamado antigamente de charriot, como lembra Francisco Alves em samba que fez sucesso nos anos 1940, segue ativo após mais de 120 anos de funcionamento e depois de diversas intervenções de modernização. O Plano Inclinado do Pilar, inaugurado dez anos depois, passou décadas sem funcionar, até sua recente reabertura, enquanto o Plano Inclinado Liberdade-Calçada, no início da década de 1980, veio se juntar aos anteriores para transportar diariamente centenas de pessoas, vencendo a encosta que caracteriza a paisagem urbana de Salvador e que, desde a fundação da cidade, em 1549, se colocou como um desafio em termos de mobilidade. A inauguração, nos últimos anos, das linhas 1 e 2 do metrô de Salvador, paralelamente ao início dos estudos para modernizar o “Trem do Subúrbio”, transformando-o em um VLT, veio resgatar a importância do transporte sobre trilhos na primeira capital brasileira – a segunda cidade da América do Sul a implantar um sistema de transporte coletivo sobre trilhos, em 1869, quatro anos antes que Lisboa contasse com sistema semelhante.
O transporte sobre trilhos faz parte, hoje, da vida cotidiana de milhões de pessoas que vivem nas grandes metrópoles brasileiras, de Porto Alegre a Fortaleza, de Brasília a Recife, contribuindo na estruturação urbana e na articulação entre centros e periferias. Mesmo cidades de menor porte, como Santos e São Vicente, em São Paulo, e Sobral, no Ceará, passaram a contar, nos últimos anos, com sistemas de Veículo Leve sobre Trilhos que estruturam seus territórios. Essas redes facilitam a mobilidade dos brasileiros e, em diversas situações, estabeleceram novos vetores de expansão e adensamento e de requalificação urbana.
A melhoria da qualidade de vida dos moradores das grandes metrópoles brasileiras depende, inexoravelmente, da ampliação das redes de transporte de massa, diminuindo os tempos de deslocamento. A adoção do transporte urbano de passageiros sobre trilhos certamente tem um importante papel a cumprir nesse processo, inclusive pela reduzida emissão de gases poluentes, quando confrontada com a do transporte urbano de passageiros sobre rodas.
Da distante Jaçanã, do “Trem das onze”, de Adoniran Barbosa, ao trem da Central do Brasil, de Marinês, Jorge Benjor e tantos outros, passando ainda pelo Metrô da Linha 743, de Raul Seixas – metáfora da repressão do período da ditadura militar –, o transporte sobre trilhos continua fazendo parte da vida cotidiana e das referências sociais e culturais de milhões de brasileiros… e certamente continuará a sê-lo, ainda, por muitos e muitos anos.
Nivaldo Vieira de Andrade Junior é Arquiteto e Urbanista, doutor em Arquitetura e Urbanismo e Professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, é presidente Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
Artigo publicado no livro “Mobilidade Urbana sobre Trilhos na Ótica dos Grandes Formadores de Opinião”, planejado e publicado pela ANPTrilhos – Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos.
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