A recente crise dos combustíveis assustou. A mobilidade urbana, dependente até a medula do modelo rodoviário, levou um baque. Como alternativa, a percepção de que é preciso investir em outras formas de transporte de massa para garantir o deslocamento da população. É aí onde entram as redes de transporte sobre trilhos – trens e metrôs. E quem faz a defesa desse modelo é Roberta Marchesi, superintendente da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos). Na entrevista a seguir, ela lembra que perdemos uma excelente chance de ter ampliado a pequena malha metroferroviária do País na época dos jogos mundiais e que, agora, é preciso cobrar uma visão moderna e consciente dos futuros gestores, a serem eleitos nas próximas eleições. É preciso que todos entendam que a prioridade aos trilhos é mais do que urgente para que as médias e grandes cidades não travem de vez.
JC – A crise dos combustíveis mostrou que o Brasil precisa se libertar do modelo rodoviário para se locomover. Por que o País continua de costas para o transporte metroferroviário como solução para a mobilidade urbana nas médias e grandes cidades?
Roberta Marchesi – É algo cultural, que começou em 1950, quando o Brasil resolveu adotar o modelo rodoviário, expandido a indústria automobilística como forma de alavancar a economia. Foi uma decisão que para aquela época poderia ser interessante, mas não é mais. E o problema é que os governantes fecharam os olhos para qualquer outro tipo de transporte que não fosse o rodoviário. As cidades cresceram, as regiões metropolitanas se expandiram e a gente terminou refém do transporte público como solução de mobilidade. Sem ele as cidades não andam. Com o tempo, o que é mais grave, criamos também um lapso cultural sobre a importância do transporte metroferroviário e de engenharia, porque paramos de desenvolver projetos de transporte de passageiros. E hoje não há mais solução de mobilidade urbana para os médios e grandes centros urbanos que não passe por uma alternativa de alta demanda, que é o transporte sobre trilhos.
JC – Qual a força do transporte de passageiros sobre trilhos no Brasil e no mundo?
Roberta Marchesi – As grandes cidades do mundo usam o transporte sobre trilhos como solução nos grandes corredores. E nessas cidades mais desenvolvidas o transporte metroferroviário representa mais de 40% de todo o movimento diário de passageiros. No Brasil é bem diferente. O transporte sobre trilhos responde por menos de 6%. É um percentual muito baixo. Nas cidades brasileiras um pouco mais desenvolvidas, como São Paulo e Rio de Janeiro, esse percentual ainda atinge de 15% a 20% do transporte total da população. Mas se constata que, mesmo em cidades maiores, está muito abaixo do que uma cidade realmente precisa para ter uma mobilidade adequada. Há exemplos ade prioridade ao transporte sobre trilhos no mundo todo. Na Europa, Londres, Paris, Barcelona e Madri têm redes superiores a 400 quilômetros de trilhos. Nos EUA, Nova York, Los Angeles também têm sistemas avançados. Mas para não citar apenas exemplos norte-americanos ou europeus, vejamos os nossos amigos mexicanos. A Cidade do México tem um sistema de trilhos altamente desenvolvido. Que foi inaugurado no mesmo ano do metrô de São Paulo, há 50 anos, que é a cidade brasileira mais avançada sobre trilhos. Enquanto em 50 anos São Paulo fez 71 quilômetros de trilhos, a Cidade do México fez 220 quilômetros – ou seja, mais de quatro vezes mais trilhos. Eles andaram muito mais rápido e isso demonstra a prioridade que cada um dos governos deu ao transporte metroferroviário.
“A malha sobre trilhos no Brasil é de apenas 1.064 quilômetros de extensão, muito pouco comparado com grandes cidades do mundo. Mostra o quanto precisamos avançar na expansão do transporte metroferroviário como solução de alta capacidade nas médias e grandes cidades. Perdemos a chance nos jogos mundiais, mas agora teremos as eleições para presidente”,
JC – Então por que erramos lá atrás e continuamos errando, ignorando o potencial do transporte sobre trilhos?
Roberta Marchesi – Tudo passa pela política. O nosso calendário político é um grande obstáculo. Temos uma legislação que faz com que os mandatos políticos não estejam alinhados com as necessidades de desenvolvimento do País ou das regiões metropolitanas. Temos mandatos eletivos de quatro anos e nesse período os políticos buscam gerir as cidades deixando um legado que garantam a própria reeleição ou permitam reeleger alguém da sua linha política. E projetos estruturadores, como os de metrô e trens, não se consegue tirar do zero e inaugurar em quatro anos. E é comum acontecer de, mesmo existindo um projeto pronto, com estudos feitos, muitas vezes um partido político que ganhou uma eleição decidir abandonar os projeto do político anterior. Com isso perde a cidade, a população. E isso é comum dos projetos de longo prazo. Não só os de trilho, mas na educação, saúde, segurança pública. Têm dificuldade de avançar por causa da descontinuidade de investimentos. Esses projetos teriam que ser desenvolvidos e obrigados a serem tocados mesmo na mudança de gestão. Deveria haver uma legislação que obrigasse. Válida para todos os sistemas, sejam os geridos pelo Estado, com ou sem concessão, aqueles totalmente privados e também os sob gestão federal e municipal.
JC – No Brasil, o transporte metroferroviário está, ao menos, presente nas principais cidades? Onde deveríamos?
Roberta Marchesi – Infelizmente não. O Brasil tem 25 Regiões Metropolitanas acima de 1 milhão de habitantes e todas elas já deveriam ter algum tipo de transporte sobre trilhos. Desse total, apenas 12 têm algum tipo de sistema metroferroviário. Isso mostra o quanto o Brasil tem para avançar. Devido ao crescimento e à densidade das nossas regiões metropolitanas não há uma solução de mobilidade urbana que passe por uma única alternativa, como é o transporte rodoviário. Hoje é preciso investir em soluções que passem pelo transporte sobre trilhos como sistema estruturador desses grandes volumes urbanos, integrados com as demais redes de transporte. O menor alimentando o maior. O País inteiro tem 1.064 quilômetros de extensão de rede de transporte sobre trilhos. É muito pouco. Enquanto Londres, Nova York, Madri, escandalosamente, têm redes superiores a 400 quilômetros cada uma. Mostra o quanto precisamos dotar os nossos grandes centros urbanos de uma rede de mobilidade realmente adequada aos deslocamentos. Por isso vemos tantos problemas nas nossas cidades. Não só pela adesão ao transporte individual, mas pela substituição do metrô pelo ônibus. Em várias grandes cidades vemos importantes corredores de transporte tomados por filas de ônibus, prestando um serviço que não é o adequado. Com terminais abarrotados de gente, pessoas querendo ir para casa, sem conseguir, transportadas sem qualquer tipo de conforto.
JC – Na época da preparação para a Copa do Mundo de 2014 perdemos uma grande oportunidade de expandir as redes sobre trilhos? Vimos o cavalo passar selado na nossa frente e não montamos nele?
Roberta Marchesi – Sim, o Brasil perdeu uma grande oportunidade de avançar no desenvolvimento das redes de trilhos a partir dos grandes jogos. Não só a Copa do Mundo de 2014, mas também as Olimpíadas de 2016. Se a gente pensar que desde 2012 nós tínhamos na matriz da Copa 79 quilômetros de trilhos para serem desenvolvidos até 2014 e nenhum desses quilômetros conseguiu ser entregue, é claro que perdemos uma grande oportunidade. Porque o grande legado que esses jogos deixam é a infraestrutura criada para o atendimento da população durante os eventos. Tínhamos vontade de fazer e recursos. Era dinheiro do Orçamento Geral da União (OGU), que terminaram sendo destinados para outros projetos. Chegamos a desenvolver alguns, mas eles não avançaram por diversas razões.
JC – E agora? Como resgatar esse tempo perdido?
Roberta Marchesi – Por isso é importante destacar que este ano temos uma nova oportunidade com as eleições. O Brasil inteiro vai eleger seus governantes e é o momento de cobrar dos políticos que coloquem em suas campanhas as redes de transporte de alta capacidade. Que eles entendam que não temos como desenvolver as médias e grandes regiões metropolitanas se não tivermos uma rede estruturadora sobre trilhos. Esses futuros governantes precisam olhar para as cidades e priorizar esses projetos. Até porque é preciso expandir para oferecer mais qualidade e conforto às redes que estão em operação. É necessário o olhar estratégico, de planejamento, mas também olhar para a operação da rede existente. Às vezes os gestores se preocupam muito com o planejamento, mesmo que ele não aconteça, e esquecem a rede que já está atuando. Não é só o sistema metroferroviário do Recife que precisa de toda uma modernização. Existe uma deficiência em quase todos os sistemas públicos do Brasil. Eles precisam continuar se modernizando para ter mais qualidade e atender ao cidadão de forma adequada. O Recife, por exemplo, tem 71 quilômetros em sistemas de trilhos, sendo, em extensão, o segundo maior metrô do Brasil e o quarto maior considerando todos os tipos de trilho (redes elétricas e a diesel). Os números olhados isoladamente deveriam ser motivo de orgulho para os cidadãos do Recife. Mas não são porque não adianta ver só pela extensão das linhas. É a qualidade do serviço prestado que importa. E o metrô do Recife está muito abandonado. Precisa que os líderes olhem para ele e façam investimentos. O governo federal precisa lembrar da importância que tem para o cidadão que o utiliza diariamente. É um sistema que hoje transporte 400 mil pessoas por dia e que, se passasse por uma modernização, poderia estar transportando o dobro – 800 mil pessoas/dia.
JC – A situação é mais crítica nos sistemas públicos. Chegou a hora, de fato, das concessões? Os sistemas públicos estão com os dias contados?
Roberta Marchesi – É preciso analisar não a competência do governo, mas a capacidade e a infraestrutura existente para a operação e gestão desses sistemas. A grande diferença que vemos entre os sistemas públicos e privados é a dependência de recursos públicos para investimentos. Nos privados essa dependência é muito menor. Exatamente porque existe um parceiro privado fazendo a gestão e a operação de uma forma muito mais eficiente porque tem que se autorregular. Se a operação for muito cara, terá um lucro menor. Por isso, ele trabalha buscando a eficiência de todo o sistema. Isso é uma grande vantagem para sistemas concedidos. O que a gente vê é que os sistemas privados têm uma maior eficiência tanto na gestão como na operação. Enquanto que os sistemas públicos têm dificuldades nessas áreas. Não pela capacidade das pessoas que trabalham, mas pela falta de recursos.
JC – Então, a saída são as concessões dos sistemas sobre trilhos?
Roberta Marchesi – Os Estados e municípios que não têm condições de investir da forma adequada na gestão e operação desses sistemas devem fazer a concessão para conseguir garantir, através de um parceiro privado, a melhor qualidade do transporte oferecido à população. Agora, nós temos sistemas públicos, como é o caso do metrô de São Paulo, que é operado pelo governo do Estado e que funciona muito bem. É um sistema primoroso. Tem indicadores comparados aos melhores metrôs do mundo. Mas isso acontece porque o governo de São Paulo mantém os sistemas sobre trilhos como prioridade de gestão. Mas agora todas as novas linhas do metrô paulista estão vindo com concessões. Exatamente para desonerar o governo, para que ele possa investir em outras áreas, como segurança, educação e saúde. O importante é dizer que os governos não devem deixar de investir em sistemas sobre trilhos mesmo quando não tiverem recursos. Devem buscar um parceiro privado porque hoje em dia o setor metroferroviário de passageiros é altamente atrativo para investimento. Todos os projetos de PPP para concessões de trens e metrôs são sempre vitoriosos. Os parceiros privados estão interessados em investir em mobilidade urbana e temos que aproveitar esse momento.
JC – No caso do metrô do Recife, 60% dos passageiros transportados entram no sistema pela integração com os ônibus. Essa dependência da alimentação pelo ônibus é boa ou ruim?
Roberta Marchesi – Todas as concepções mais modernas de desenvolvimento urbano para redes de trilhos necessitam, obrigatoriamente, da alimentação de outros sistemas. É algo natural, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Agora, isso reflete que o sistema não chega às regiões que têm maior carência de transporte. Por isso precisa ser alimentado. É um reflexo da falta de expansão do sistema de trens e metros. Se chegasse, não teria tanta dependência do rodoviário. Recife tem corredores que deveriam ter trilhos. A CBTU tem diversas propostas de expansão para a Região Metropolitana do Recife e com a vantagem de que são áreas que ainda não dependem de desapropriações. Reduz significativamente a necessidade de investimento (de 20% a 30%). Isso é algo que o Recife deveria aproveitar. Sabemos que depende do governo federal, mas existe a pressão do Estado e da sociedade para que a expansão aconteça. As regiões metropolitanas de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte já estão muito mais adensadas, custariam muito caro. Além disso, os projetos seriam de metrô de superfície, que também são bem mais baratos do que os subterrâneos. Seria uma forma de ampliar a rede sobre trilhos a baixo custo.
JC – E sobre o discurso pronto de que transporte sobre trilhos é muito mais caro do que o rodoviário? O que você tem a dizer? Existe uma disputa entre os modais?
Roberta Marchesi – Quando a gente fala do desenvolvimento de um corredor de transporte é fundamental que ele esteja adequado à demanda, à quantidade da população que vai utilizá-lo. É fator preponderante a demanda de passageiros. Um metrô atende de 60 mil a 80 mil passageiros por hora e por sentido. É a capacidade máxima dele. Quando você pega uma linha de BRT essa conta cai para 6,7 mil passageiros/hora/sentido. Se considerarmos as linhas expressas e paradoras, teremos, no máximo, 12 mil passageiros/hora/sentido utilizando uma infraestrutura da cidade de pelo menos três vias. Não existe, na verdade, uma disputa ou rivalidade entre trilhos, VLT, BRT e ônibus. O que existe é a demanda de passageiros. É o modelo de transporte certo para a demanda de um determinado corredor. Não adianta um gestor colocar uma linha de trilho que tem capacidade para 60 mil passageiros quando a demanda é de 12 mil. Nesse caso, é melhor usar um VLT. Será mais eficiente e barato. Se a demanda for de 8, 9 mil passageiros, o certo é optar por um BRT. Não é necessário usar um VLT. Dizer que transporte sobre trilhos é caro é uma falácia. Quando você analisa o clico de vida de todo o empreendimento desde a hora em que se investe até a hora que é necessário fazer a manutenção, a renovação da frota, o custo por passageiro de cada um desses sistemas é muito próximo. A grande diferença é que o investimento inicial de um BRT é mais barato do que o do VLT ou do metrô. Mas nunca iremos conseguir atender a uma demanda de VLT ou metrô com um sistema de BRT. Na verdade, o que temos que buscar é o sistema correto para aquela demanda.
JC – E em relação ao aumento da tarifa de quase 90% dado ao metrô do Recife e aos outros quatro sistemas geridos pela CBTU? Como a ANPTrilhos viu esses reajustes?
Roberta Marchesi – Muito embora tenha tido um aumento muito expressivo no metrô do Recife, de R$ 1,60 para R$ 3, as tarifas metroferroviárias no Brasil custam, em média, R$ 3,65. Ou seja, mesmo com esse aumento a tarifa do Recife ainda está abaixo da tarifa média do País. A passagem do Distrito Federal custa R$ 5 e é uma das mais altas do País. A mais baixa é da Trensurb, em Porto Alegre, e custa R$ 3,30. Mesmo com esse aumento constatamos que a tarifa do Recife ainda está mais barata do que a tarifa média mais baixa do Brasil. Agora, em toda essa discussão, o importante é ter um sistema que atenda à população. Qualquer valor que se pague é muito caro para um serviço sem qualidade. Lembrem dos manifestos de 2013, que começaram com o aumento das tarifas do transporte público, mas que tiveram como mote a qualidade do transporte e, não, o reajuste. É melhor ter um serviço que se pague por ele, mas que tenha qualidade, do que pagar qualquer valor sem qualidade. Pagar pelo que é ruim é muito ruim, mesmo que seja pouco.
04/06/2018 – Jornal do Commercio/ De olho no Trânsito