Raias e Trilhos

Você já parou para pensar na dimensão de um sistema de transporte público da cidade de São Paulo? Todos os dias, quatro milhões de passageiros viajam pelas linhas administradas pelo Metrô. O engenheiro eletrônico Cláudio Mamede Kestener (59) é um deles, mas algo o diferencia dessa multidão — ele está por trás do funcionamento dos trens que circulam em quase 70 quilômetros de trilhos.

O Metrô funciona como um carrossel: se apenas uma composição sofre problemas, todo o sistema é afetado. Cláudio trabalha na operação dos trens subterrâneos há 33 anos e faz uma analogia com a natação para explicar como faz para manter a ordem e corrigir o mais rápido possível as adversidades que aparecem de surpresa.

Assim como no esporte, é preciso muita dedicação e treinamento para a melhoria contínua do desempenho das linhas. Nós fazemos simulações constantes para agirmos o mais rápido possível e colocarmos os trens para seguir viagem.”

A analogia com a natação não aparece aqui por acaso. Cláudio sabe muito bem o que é treinar como um atleta de alto rendimento. Em 1980, ele representou o Brasil no revezamento 4x100m medley e nos 100m borboleta das Olimpíadas de Moscou. Sincronia e performance são elementos onipresentes em sua vida.

Ele cuida do Metrô…

Cláudio trabalha no Centro de Controle Operacional do Metrô (CCO), na retaguarda. Para isso, o ex-atleta olímpico fica cercado de monitores de TV e computadores que mostram informações em tempo real das linhas 1-Azul (Jabaquara – Tucuruvi), 2-Verde (Vila Prudente – Vila Madalena), 3-Vermelha (Corinthians-Itaquera – Palmeiras-Barra Funda) e o Monotrilho da Linha 15-Prata.

“É uma paixão. A gente se envolve mesmo e quer ver ele funcionar da melhor maneira possível. Temos tudo controlado para ter o menor número de erros possíveis. A gente tem todo um treinamento para o operador do trem saber atuar rápido e seguir viagem”, explicou o engenheiro.

“Existem vários fatores que interferem no desempenho do Metrô, desde uma interferência do usuário – aquele que segura a porta ou tem algum mal súbito ou problema de segurança – até os problemas técnicos em si, como falhas na energia elétrica que provocam a redução da velocidade. Não é tão frequente, mas acontece.”

As pessoas têm bastante curiosidade, porque é diferente mesmo. Quando dá problema, muitos amigos vêm perguntar: ‘Ô, Cláudio! O que aconteceu lá no Metrô, que deu problema hoje?’

Cláudio divide seus dias entre trilhos e raias. Quando não está no CCO, o engenheiro pula na piscina para os treinamentos de natação no Clube Pinheiros. Ele representa o Metrô em competições do Sesi (Serviço Social da Indústria) e disputa campeonatos de atletas veteranos, os “masters”.

“Eu brinco que tenho mais tempo dentro da água do que fora. O Metrô participa dos jogos do Sesi, e tem algumas fases de torneios bem legais. Quem ganha a etapa nacional, se a empresa apoia, pode ir até para o Mundial. Tivemos a oportunidade de ir à Estônia em 2010 e nossa equipe de revezamento 4x100m foi vice”, relembrou.

Além de seguir praticando a natação, que também é uma paixão, Cláudio destacou a possibilidade de integração entre funcionários da companhia. No revezamento, por exemplo, o engenheiro divide a raia com três seguranças. “Eu não iria conhecê-los se não tivessem essas competições”, exalta o atleta, que espera pelas Olimpíadas de Masters em 2022.

“Conquistei medalhas em 2017, na Nova Zelândia, nadando entre os veteranos. Agora, em 2021, era para ser a Olimpíada de Master lá no Japão, mas acabou adiado, assim como os Jogos de Tóquio. Talvez ocorra em 2022. É meu plano, minha meta”, concluiu.

A escolha pela engenharia veio logo após a Olimpíada de Moscou. Cláudio sempre foi fã de números e interessado no funcionamento de equipamentos e não tinha vontade de seguir uma carreira profissional no mundo do esporte. Conquistou uma bolsa de estudos para praticar natação pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e seguiu outro sonho.

“Quando voltei da Olimpíada, aos 18 anos, eu decidi entrar na faculdade. Não quis seguir com a natação profissional. Não queria ficar direto na piscina, mesmo como técnico. Quando eu entrei na faculdade, eu segui treinando, competindo pelo Mackenzie, mas foi ficando mais difícil. Tive que me afastar da natação para me dedicar aos estudos e, mais pra frente, aos filhos e família”, lembrou.

“Fui campeão em seis ‘MackMeds’ (tradicional competição entre a faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e a engenharia do Mackenzie). Me formei em engenharia em 1985 e aí que veio a mudança: ‘Tá bom, sou engenheiro agora’. Era outro sonho. Três anos depois, já estava no Metrô”, contou Cláudio.

Cláudio é filho de Rolf Egon Kestener, ex-nadador que representou o Brasil nas Olimpíadas de Londres, em 1948. Segundo o engenheiro, o pai – que morreu em 1998 – foi, sem sombra de dúvidas, seu maior incentivador no mundo do esporte.

“Meu pai nadou revezamentos e a prova de 1500m em Londres-1948. Ele nos colocou na escolinha do Clube Pinheiros, aí aprendi a nadar aos seis anos. Quando comecei a competir, comecei a gostar da coisa. Viagem com os amigos para competições, medalhas… A coisa pega, principalmente se você começa a dar resultado, e tive logo no início”, relembrou Cláudio, que foi campeão brasileiro aos 10 anos de idade.

Naquela época era proibido falar que você ganhava dinheiro com natação. Você não podia participar da Olimpíada se ganhasse dinheiro com o esporte.

Ser “atleta profissional” não era aceito

Se hoje é complicado conseguir recursos para se manter como um atleta de alto nível, antigamente era praticamente impossível. Cláudio contou que nos anos 70 ainda não se falava em “atleta profissional”, mas estavam começando a surgir modelos de apoio através de empresas.

“Em 1975 nasceu o ‘Adote um Atleta’, que ajudava com bolsas de estudos e uma estrutura que foi montada lá no Ibirapuera para ajudar a treinar. Eu fui adotado pela Adidas e tinha apoio com psicólogos e tudo mais. Era uma ajuda indireta, porque não podia ganhar dinheiro”, lembrou.

Cláudio abraçou as oportunidades, abriu mão do lazer para treinar e estudar. Assim, chegou às Olimpíadas de Moscou, em 1980. “Fiz a tentativa de índice olímpico no Fluminense, no Rio, e bati o recorde brasileiro de 100m borboleta. Com isso, fui convocado para nadar o revezamento 4×100 4 estilos e as provas de 100m e 200m borboleta”, disse o engenheiro.

A Vila Olímpica é impressionante. A (ginasta) Nadia Comaneci estava lá e já era top. Encontrei com ela durante as refeições. Era algo muito rico ver os ídolos do meu próprio esporte e dos outros também.

Em 8 de agosto de 1980, justamente no dia do aniversário de seu pai Rolf, Cláudio embarcou para a Rússia, que na época ainda era a União Soviética e vivia um prolongamento da Guerra Fria contra os Estados Unidos.

“No individual, eu peguei 20º lugar. No revezamento, que contou comigo, Rômulo Arantes – ator da Globo falecido -, Sérgio Pinto Ribeiro e Jorge Fernandes, fomos finalistas e acabamos na oitava colocação. Batemos o recorde sul-americano. Estamos no Hall da Fama nos Estados Unidos, onde é o da natação mundial.”

“O clima de uma Olimpíada é diferente de outras competições. A tensão, o nervoso antes da prova é diferente. Fora que você acaba convivendo com atletas gigantes. Na época, também, o que teve de diferente foi o boicote dos Estados Unidos e de alguns países em relação à Rússia. Os Estados Unidos não estavam, mas as potências europeias participaram. Apesar disso, foi um nível altíssimo”, acrescentou.

Hoje, Cláudio guarda as lembranças da época. Uma delas é o cartaz do famoso Ursinho Misha, o mascote das Olimpíadas de Moscou que conquistou fãs pelo mundo ao “chorar” na cerimônia de encerramento. E, no dia a dia, segue dedicado a uma missão que não oferece medalhas, mas serve a milhões de brasileiros.

26/07/2021 – UOL