Pandemia agrava a crise e mostra que operação privada de sistemas de passageiros não prescinde da participação do poder público
Em um ano e meio de pandemia, os sistemas metroferroviários ainda enfrentam uma brutal queda de demanda de passageiros, o que vem levando a um acúmulo de déficit sem precedentes no setor. Aqueles submetidos à gestão pública, como o Metrô de São Paulo (linhas 1-Azul, 2-Verde, 3-Vermelha e 15-Prata), CPTM (com exceção das linhas 8 e 9), CBTU, Trensurb, Metrofor e Metrô DF, tiveram no caixa do governo (estadual ou federal) a garantia de manter seus trens em circulação. Mas a atuação do poder público também mostrou-se imprescindível na operação privada. Nos locais onde essa parceria é nula, os sistemas de passageiros entraram em colapso financeiro.
Esse é o caso do Rio de Janeiro. Com a receita atrelada basicamente à tarifa paga pelos passageiros e sem qualquer tipo de subsídio do governo do estado previsto nos contratos de concessão, SuperVia e MetrôRio viram o caixa desaparecer desde o início da pandemia.
No caso do VLT Carioca, o contrato de PPP até prevê subsídio, mas a inadimplência do poder concedente vem prejudicando as contas da concessionária. Essas situações contrapõem-se às outras experiências privadas no país: em São Paulo (ViaQuatro e ViaMobilidade) e em Salvador (CCR Metrô Bahia). A raiz do problema no estado fluminense está diretamente ligada à insegurança jurídica e à modelagem antiquada dos contratos de concessão dos sistemas.
Contratos modelados com base na Lei de Parceria Público-Privada (PPP), de 2004, como é o caso das Linha 4-Amarela (ViaQuatro), Metrô de Salvador (CCR Metrô Bahia) e VLT Carioca preveem sistemas de subsídios do governo que permitem que a remuneração da operação seja calculada além da tarifa cobrada ao usuário. Ou seja, a tarifa paga pelo passageiro é complementada pelo governo à concessionária em forma de contraprestação pecuniária (pagamentos mensais para complementar a remuneração tanto do que foi investido pelo privado no sistema quanto do custo de operação).
Além disso, esses contratos de concessão trazem mecanismos de mitigação de demanda, ou seja, regras que garantem o compartilhamento do prejuízo com o poder concedente quando a demanda cai abaixo de um patamar previamente definido, ao passo que estabelece a divisão dos lucros caso a demanda supere outro limite pré-fixado. Se o número de passageiros superar em muito a previsão, os contratos podem até prever uma repactuação, com a adequação da tarifa técnica (de remuneração) ao novo patamar de demanda. O terceiro ponto presente nos contratos (com exceção da Linha 5-Lilás) é o estabelecimento de sistemas de garantias, ou seja, de fundos que garantem o pagamento das contraprestações e dos valores referentes à banda de demanda para as concessionárias, numa eventual inadimplência por parte do poder concedente.
Os contratos de concessão do MetrôRio e da SuperVia, assinados em 1997 e 1998, respectivamente e, portanto, antes da promulgação de Lei de PPPs no Brasil, determinam que a operação deve ser custeada pela tarifa cobrada aos usuários (há um percentual de receita acessória, mas é ínfimo), além de não conter qualquer aparato de mitigação de demanda. Tampouco prevê qualquer garantia vinda do poder concedente. “Naquela época, a intenção era basicamente desonerar o estado. Foram os primeiros instrumentos dessa natureza. E nesse tipo de contrato, ninguém pensava em risco de demanda, que era integralmente assumido pela concessionária. A menos em situação de força maior,” lembra Joubert Flores, presidente da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos). “Por esse aspecto os contratos funcionaram. O estado parou de desembolsar para manter a operação”, acrescenta.
Flores lista uma série de números e eventos para reforçar que os contratos de concessão, naquele momento, foram importantes. A receita do MetrôRio, por exemplo, cobria pouco mais de 20% do custo operacional. Já a SuperVia era uma concessão da empresa Flumitrens, um pedaço da antiga Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) que havia sido transferido do governo federal para o estado do Rio. Quando foi transferida, operava com um déficit gigantesco e só transportava 140 mil passageiros por dia (hoje são cerca de 300 mil/dia, mas antes da pandemia esse número era o dobro). Flores, no entanto, defende que, hoje, num momento completamente adverso, as regras precisam ser atualizadas sob o risco de os sistemas terem suas operações ainda mais prejudicadas.
“A prestação dos serviços é uma obrigação constitucional do estado, que pode fazer isso por recurso próprio ou pode conceder para a iniciativa privada. Mas, mesmo concedendo, a obrigação da prestação do serviço continua sendo do estado. Numa situação como a da SuperVia, em que o número de passageiros, segundo a própria agência reguladora (Agetransp), é abaixo da linha de corte da sustentabilidade (que é de 450 mil passageiros/dia), manter a prestação de serviço sem ter um mecanismo de repasse é pedir para o setor privado pagar para prestar um serviço público”, argumenta o presidente da ANPTrilhos.
Consequências do desequilíbrio
No estado do Rio, as consequências do desequilíbrio dos contratos durante o momento de crise ganharam contornos dramáticos. No início de junho, a SuperVia teve o pedido de recuperação judicial aceito pela 6ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio. A empresa, que acumula uma dívida de R$ 1,2 bilhão desde o início da pandemia (março 2020), ganhou 60 dias para apresentar um plano de recuperação. Logo depois, a empresa recebeu autorização para celebrar uma linha de financiamento no valor de R$ 80 milhões com a sociedade Gumi Brasil Participações, subsidiária da Mitsui e principal acionista da concessionária. O contrato vai garantir o pagamento de despesas operacionais e também de investimentos à manutenção dos serviços da SuperVia. Para a Justiça, a medida demonstra boa-fé do acionista financiador e tem respaldo na Lei de Recuperação Judicial.
No mesmo mês, um despacho do governador fluminense Cláudio Castro autorizou que o MetrôRio fosse repassado ao fundo árabe Mubadala, um dos credores da Invepar, controladora da concessão do metrô carioca. A Invepar confirmou que o MetrôRio integra o conjunto de ativos a serem eventualmente transferidos no âmbito de um acordo de reestruturação da dívida da companhia, mas ressaltou que a transferência e a efetiva implementação da reestruturação da dívida estão sujeitos ao cumprimento de condições precedentes, “não sendo a autorização emitida pelo estado do Rio de Janeiro uma certeza da concretização da transferência”. Segundo a empresa, essas condições se referem, entre outras questões, a aprovações regulatórias, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e de credores.
Além do comunicado emitido pela Invepar, o MetrôRio preferiu não se manifestar sobre a situação da empresa ou sobre os desequilíbrios decorrentes da falta de atualização do contrato. Já a SuperVia confirmou que a defasagem do contrato em relação às possibilidades instituídas pela lei das PPPs é um dos elementos que dificultam a situação da companhia. Desde que a concessão foi assinada, em 1998, foram 11 termos aditivos, em nenhum deles, porém, abordou-se a necessidade de mudanças na atual forma de remuneração da concessionária.
Gerente de Administração do Contrato de Concessão da SuperVia, Leila Barros afirma, no entanto, que a empresa tem conversado com o governo do estado para buscar soluções viáveis em termos de reequilíbrio do contrato, embora, acredite que o momento não seja oportuno para uma mudança efetiva. Além de um ambiente político instável, o estado está em regime de recuperação fiscal, sob um plano rigoroso de austeridade.
“O transporte metroferroviário é muito caro. Remunerar essa operação apenas com a tarifa paga pelos usuários é, vemos hoje, uma posição otimista. A lei das concessões é de 1995 e o contrato da SuperVia é de 1998. Naquele tempo, não havia as particularidades que vieram depois com as PPPs. Os contratos mais modernos têm questões estruturantes que diminuem os riscos, como as bandas de demanda e a questão da remuneração tarifária. São dois pontos fortes para se pensar a reestruturação de um contrato de concessão que já tem 22 anos. Hoje o valor da passagem estabelecida lá atrás e corrigido pelo índice IGPM tem que bancar quase tudo”, afirma.
Essa ponderação, aliás, mostra como toda essa situação acaba pesando no bolso do passageiro. Leila chama atenção para o fato de que a tarifa cobrada hoje pela Super- Via não é suficiente para cobrir os custos de operação. O reajuste dos preços das tarifas tanto dos trens como do metrô tem sido colocado em pauta pelas operadoras, mas evitado pela Agência Reguladora de Transportes do estado do Rio, a Agetransp.
No final de junho, o órgão suspendeu liminarmente o aumento do preço da tarifa dos trens da SuperVia, que estava previsto para entrar em vigor no último dia 1º de julho. O valor da passagem passaria de R$ 5 para R$ 5,90. Em nota, a Agetransp afirmou que a decisão atendeu a um pedido do governo do Rio de Janeiro, que entendeu que as negociações para encontrar um novo índice de reajuste, contratualmente, não se esgotaram ainda. A secretaria estadual de Transportes do Rio, cujo secretário, Rogério Teixeira, acaba de ser nomeado em substituição ao Delmo Pinho, não se pronunciou sobre a relação com as concessionárias, ou sobre a modernização dos contratos de concessão.
Na gestão de Delmo Pinho, a secretaria iniciou discussões com as concessionárias sobre o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, porém, com o estado do Rio em regime de Recuperação Fiscal, as conversas pouco avançaram. O prazo para encontrar uma solução poderia se estender até o final deste ano, afirmou Pinho em maio último.
Modelo de parceria
Na outra ponta das experiências com a concessão dos transportes metroferroviários no país, a PPP que garantiu a construção e a operação do Metrô de Salvador, na Bahia, tem sido apontada como um exemplo de modelagem equilibrada. Ao mesmo tempo em que deu salvaguardas à concessionária, buscou garantir a qualidade na prestação do serviço. Nesse contrato de PPP, governo do estado e CCR Metrô Bahia devem compartilhar os riscos relacionados à demanda. O balanço sobre as demandas real e projetada do sistema é feita anualmente por uma auditoria externa contratada pelo governo. Se a diferença entre as duas demandas no período for de até 10%, a concessionária assume os riscos; caso fique entre 10% e 25%, o governo se responsabiliza por 30% da diferença, o restante fica com a CCR Metrô Bahia; se for maior que 25%, o estado assume 100% dessa diferença.
José Eduardo Copello, presidente da Companhia de Transportes do Estado da Bahia (CTB), explica que a apuração dos dados de movimentação é feita levando em consideração o período entre março e fevereiro do ano seguinte. A média de 2020 ainda está sendo apurada, num estudo que inclui uma série de cálculos e análises envolvendo gratuidades, sistemas de bilhetagem, entre outros. “Com relação à movimentação do ano passado, estamos na fase das controvérsias, ou seja, cada uma das partes avalia os dados verificados pela auditoria e diz se concorda ou não com eles”.
No último levantamento concluído, referente ao período entre março de 2019 e fevereiro de 2020, a diferença entre a demanda real e a projetada ficou um pouco abaixo dos 25%, o que levou o governo a desembolsar R$ 80 milhões para a CCR Metrô Bahia, com base na cláusula de mitigação da demanda. O pagamento está sendo realizado em parcelas, diz Copello. Em função da queda vertiginosa de demanda provocada pela pandemia, o governo já espera que os dados de movimentação do ano passado fiquem bem abaixo dos 25%.
Copello lembra que o pagamento relacionado à mitigação de demanda não tem relação com os valores de contraprestação pecuniária, pagos pelo governo da Bahia mensalmente à concessionária. Anualmente, a contraprestação pecuniária consome cerca de R$ 125 milhões dos cofres do estado.
O presidente da CTB, que acompanhou toda a modelagem da concessão e também a implantação da PPP, conta que a parceria foi fundamental não só para fazer com que o projeto, que estava paralisado há anos, fosse expandido e avançasse, mas também para garantir um mínimo de sustentabilidade para o serviço. Além dos subsídios e das garantias, ele conta que houve um grande esforço entre o governo, os municípios envolvidos e a iniciativa privada para chegar a um acordo para otimizar todo o sistema de transporte da metrópole.
“Quando o estado da Bahia recebeu a responsabilidade de dar continuidade ao Metrô de Salvador, estabelecemos com os municípios de Salvador e de Lauro de Freitas instrumentos que preveem a não concorrência entre modais e a integração plena. Estabelecemos uma câmara tarifária e implementamos um cartão único. É a semente de uma gestão metropolitana que está sendo germinada. Hoje temos 100% de integração”.
Copello ressalta que o resultado da PPP é fruto de muita negociação e que o sucesso da concessão, os subsídios e as garantias não representam qualquer tipo de condescendência com os entes municipais ou com a iniciativa privada. “Estamos nos valendo do fato de que somos cumpridores do contrato para exigir que o contrato seja cumprido também pelas outras partes, para sentar na mesa e negociar. Vamos estabelecer um fluxo aqui, um desconto ali. Não tem conversa fácil, não. Mas tem conversa.”
Outros exemplos
O Metrô de Salvador foi construído e é operado pelo Grupo CCR, que também está à frente de dois outros contratos de concessão: as linhas 4-Amarela e 5-Lilás, ambas do Metrô de São Paulo, e o do VLT Carioca, que circula nas ruas do Centro e da região portuária do Rio. O grupo também acabou de assinar o contrato de concessão das linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda, da CPTM.
Em São Paulo, os contratos que regem a concessão das linhas 4 e 5 do Metrô têm mecanismos de mitigação semelhantes, cada qual considerando a demanda de referência específica projetada para os serviços e anunciadas nos processos de licitação. Contudo, a aplicação do mecanismo de mitigação do risco de demanda da ViaQuatro, que administra a Linha 4, não está em vigor e só será reativado após a entrega da estação Vila Sônia (a última prevista no projeto original), com previsão de inauguração em dezembro deste ano. Já o mecanismo de mitigação do contrato da ViaMobilidade, que administra a Linha 5-Lilás e futuramente a Linha 17-Ouro, está sendo aplicado desde que a operação plena passou a vigorar, em agosto de 2019.
Os dois contratos estipulam que, caso a demanda real registrada em um trimestre oscile entre 90% e 110% do que foi projetado para o período, não haverá ajuste na tarifa de remuneração. Caso varie entre 80% e 90% ou entre 60% e 80% da demanda projetada, haverá um reajuste para mais da tarifa de remuneração condizente com cada faixa. Mas, se a demanda exceder a projetada em duas faixas, de 110% a 120% e de 120% a 140%, a tarifa de remuneração é ajustada para menos. Determinam ainda que caso a demanda real fique abaixo de 60% ou acima de 140% da projetada, deverá ser acionado um gatilho para a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, que pode ser em favor da concessionário, no primeiro caso, ou do poder concedente, no segundo.
VLT Carioca: insegurança
No caso do VLT Carioca, o mecanismo de compartilhamento de risco é baseado na estimativa de demanda feita pela Prefeitura do Rio. O município indicou no edital de licitação a curva estimada de demanda que as licitantes deveriam usar para compor a proposta. E o contrato diz que, caso a demanda não fosse atingida, a prefeitura pagaria a diferença. Por outro lado, se a demanda fosse superada, a concessionária devolveria a diferença para a prefeitura. Assim, o acionamento do mecanismo é feito por banda. Se a demanda variasse 10% para mais ou para menos, haveria este ajuste, se variasse 10% a 20% ajustaria metade da diferença; se fosse mais de 20% por dois trimestres consecutivos, haveria o disparo do reequilíbrio do contrato. Isso durante os dez primeiros anos de operação plena da concessão (com todas as linhas concluídas e operando).
No entanto, o mecanismo de mitigação de demanda ainda não foi aplicado ao sistema, que opera desde junho de 2016. Segundo Marcio Hannas, presidente do VLT Carioca, para ser colocado em prática esse mecanismo ainda depende da assinatura de um aditivo que exclui um trecho do projeto original do VLT. “Em 2018, o município mandou um ofício dizendo que não deveríamos dar continuidade ao trecho que ligaria o sistema à estação de trem da Leopoldina, onde chegaria o trem-bala que ligaria o Rio à São Paulo. Havia um projeto de revitalização para a estação, que previa também um shopping, e que não foi executado. E para o trecho ser concluído, a prefeitura teria de fazer uma série de desapropriações que passaram a não fazer sentido. Mas o aditivo que exclui o trecho ainda não foi assinado”, explica.
As próprias cláusulas previstas no contrato de PPP do VLT Carioca acabaram gerando uma crise que remonta desde do período pré-pandemia. A questão está relacionada a um superdimensionamento do número de passageiros quando o projeto foi assinado com a Prefeitura do Rio, em 2013, e ainda estava em processo de implementação. A estimativa na época era que com as três linhas operando, o sistema alcançasse 260 mil passageiros/dia. Até fevereiro de 2020, pouco antes da chegada do coronavírus, o VLT Carioca transportava 110 mil passageiros diariamente (já com as três linhas em operação). Hoje a média está em 46 mil usuários/dia.
Ele chama atenção ainda para o fato de que, quando a previsão de demanda foi feita na época, havia uma série de outras premissas, além da revitalização da estação Leopoldina, que estavam nas mãos do poder concedente e que não foram feitas. Entre elas, o incentivo para a ocupação e a revitalização da Zona Portuária e a reorganização do trânsito no Centro da cidade, que contaria com a reestruturação das linhas de ônibus que circulam na região e fariam do VLT o principal meio de transporte no Centro.
Além da deficiência em relação ao mecanismo de banda, o VLT Carioca enfrenta insegurança jurídica. Desde maio de 2018, as parcelas mensais de R$ 9,6 milhões (de contraprestação pecuniária, previstas no contrato de PPP) não são repassadas pelo governo municipal ao Consórcio VLT Carioca, formado pelo Grupo CCR (hoje o principal acionista, com mais de 75% de participação), e as empresas Invepar, Riopar e Odebrecht Mobilidade. Essa contrapartida contratual é, na verdade, um retorno pelo investimento de quase R$ 1,2 bilhão realizado pela concessionária na implantação do projeto, uma vez que, ao fim do contrato de 25 anos, as instalações, vias e trens poderão retornar ao poder público.
Garantia faz diferença
Presidente da divisão de Mobilidade do Grupo CCR, Luís Valença afirma que um ponto é fundamental para evitar riscos e garantir o cumprimento dos contratos. “Os contratos de PPP do Metrô de Salvador e do VLT Carioca são muito parecidos, com 100% do investimento pelo parceiro privado, parte dele financiado pelo BNDES. Em ambos os casos, há mecanismos de contraprestação pecuniária. Os dois também têm mecanismos de mitigação de demanda. E onde está a diferença? Está nas garantias”.
As garantias as quais Valença se refere são formas de assegurar que o poder concedente cumpra as obrigações financeiras previstas no contrato. Podem ser um fundo ou outro dispositivo que mantenha valores que possam ser usados em caso de descumprimento. O contrato da Linha 5-Lilás do Metrô de São Paulo não tem esse tipo de mecanismo (por ser uma concessão comum, quando o concessionário já inicia a operação com a infraestrutura pronta pelo governo), ao passo que o da Linha 4-Amarela (um concessão do tipo PPP) é garantido pelo penhor de cotas de Fundo da Companhia Paulista de Parcerias (CPP).
Segundo o diretor, o estado da Bahia tem um sistema de garantias que funcionou e foi necessário. Havia repasses do governo federal que não foram feitos a tempo no início do projeto, mas o sistema de garantias cobriu. O fluxo de dinheiro não parou de chegar, mesmo que chegasse com algum atraso, diz Valença. O presidente da CTB, Eduardo Copello, confirma: “O fundo garantidor cobre, além da concessão do Metrô de Salvador, outros 10 contratos de PPP no estado da Bahia, e tem um saldo hoje de cerca de R$ 250 milhões. Nunca recorremos ao fundo para pagar as contraprestações pecuniárias à CCR Metrô Bahia. Honramos esse pagamento todos os meses com os recursos do estado”.
No Rio de Janeiro, no entanto, as garantias não funcionaram. “Não chegaram a ser implementadas de forma completa e sustentável, como previa o contrato. E ainda que o poder concedente tivesse a intenção de cumprir com suas obrigações, não teria dinheiro no cofre. Hoje quem está suportando a operação do VLT são os acionistas, aumentando as dívidas e o custo da operação”, completa Valença.
O fundo garantidor do VLT Carioca deveria ser composto por ativos imobiliários da prefeitura do Rio, que gerariam fundos para uma conta garantia. Pelas estimativas do VLT Carioca, a conta deveria ter em valores atuais R$ 63 milhões, valores que financiariam a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro, a Cdurp, o órgão fiscalizador do serviço, e, eventualmente, garantiriam o pagamento de parcelas não pagas à concessionária. Mas os imóveis não chegaram a ser aportados pela prefeitura para compor o fundo, à exceção de um terreno que não gerou qualquer rendimento no período.
O Grupo CCR chegou a pedir na Justiça o cancelamento do contrato em 2019. Sobre isso, Marcio Hannas disse que a empresa está em tratativas com a atual gestão e que busca um entendimento que desfaça o impasse. E lembra que apenas a modelagem do contrato não é garantia de que não haverá problemas. “Na administração contratual sempre vai haver questões que não previstas. Nosso contrato é muito moderno, mas ainda assim, tivemos problemas. É preciso ter também segurança jurídica, para que as diferenças não se arrastem na Justiça”.
Há ainda uma outra questão apontada por todas as pessoas ouvidas para esta reportagem como crucial para a busca de soluções para os sistemas metroferroviários e de um equilíbrio financeiro das empresas concessionárias: um planejamento integrado dos sistemas de transporte.” Não há futuro do transporte público nas grandes regiões metropolitanas se não houver uma reorganização do planejamento do transporte público. Não faz sentido ter governos estaduais e governos municipais regulando os sistemas sem a busca da organização e da eficiência”, afirma Valença, que completa:
“O que se espera é que prefeitos e governadores se unam e façam uma única organização, uma modelagem para que não haja perda de eficiência. O sistema tem que estar coordenado, pois o passageiro é um só. Caso contrário, ou a tarifa será cara demais para o usuário ou vai onerar os cofres do estado. Tem que haver uma política integrada, tanto no meio de pagamento quanto na integração. Então o poder concedente tem que fazer um grande acordo, senão quebra todo mundo. E isso pode ser via autoridade metropolitana, consórcios, acordos operacionais.”
Concessão de linhas em plena pandemia
Mesmo numa situação extrema de pandemia, parcerias público-privada na área metroferroviária, quando modeladas de forma equilibrada, mostram-se possíveis de existir e até de atrair a iniciativa privada. As linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda, da CPTM, concessionadas no último dia 20 de abril à CCR, em pleno momento de crise na demanda, são um exemplo disso. O grupo ofereceu R$ 980 milhões de outorga e ganhou o direito de operar e manter as linhas por 30 anos.
No contrato formalizado entre a ViaMobilidade e a secretaria de Transportes Metropolitanos de São Paulo, a remuneração da concessionária será calculada por meio de uma tarifa técnica por passageiro transportado. Esta, como nos demais contratos citados, poderá variar para mais ou para menos, dependendo de fatores como os indicadores de desempenho do serviço ou a variação de demanda. No entanto, como foi celebrado em plena pandemia, o contrato prevê que, nos cinco primeiro trimestres a partir do início da operação, o gatilho de remuneração seja acionado caso a demanda real seja menor que 95% da demanda estimada para o período.
Da mesma forma, a companhia terá uma remuneração menor caso a demanda seja maior que 105% da projetada. Depois desse período, as porcentagens serão modificadas. Haverá compensação para a concessionária caso a demanda fique entre 60% e 85% da projetada, e para o poder concedente caso a demanda registrada fique entre 115% e 140%. Prevê ainda que, caso as variações de demanda sejam ainda mais intensas – chegando a menos de 60% e a mais de 140% da demanda projetada – a compensação será ainda maior, levando em conta o impacto econômico financeiro.
19/07/2021 – Revista Ferroviária Edição Maio/Junho – 2021