Os contratos de concessão na área de infraestrutura devem ter uma onda sem precedentes de pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro por causa da perda abrupta de demanda provocada pelo avanço do novo coronavírus.

A avaliação praticamente unânime de advogados e executivos das concessionárias é que, diferentemente da recessão de 2015-2016, desta vez os prejuízos verificados não constituem risco do negócio e são decorrentes de “caso fortuito” e “força maior”. Com isso, a tendência é que repactuações contratuais sejam um tema predominante nas agências reguladoras quando a atual situação de emergência sanitária acabar.

Um dos maiores imbróglios envolve o setor elétrico. As distribuidoras de energia observam redução acelerada do consumo, devido ao fechamento de shopping centers e grandes edifícios de escritórios, mas continuam precisando honrar contratos de longo prazo com as geradoras.

Uma pequena amostra do descompasso pode ser vista com os dados mais recentes do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) – que ainda nem captam a ampliação da quarentena em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Na sexta- feira passada, o consumo do sistema interligado caiu 6% na comparação com o mesmo dia da semana anterior. No domingo, houve redução de 8,9%. O aumento

da demanda nas residências, com as mudanças na rotina de trabalho, não tem compensado a diminuição no comércio e serviços.

E ninguém sabe o que ainda vem por aí. O risco – principalmente se a retração da atividade econômica se prolongar – é do que se chama, no jargão do mercado, de “sobrecontratação involuntária” das distribuidoras. Hoje elas têm direito de repassar o excedente à tarifa dos consumidores quando há um pequeno erro de cálculo e compram mais energia das geradoras do que a demanda verificada. O limite, hoje de 5%, pode tornar-se insuficiente diante da nova realidade.

“Não sabemos qual é a solução, ela terá que ser coordenada pelos ministérios de Minas e Energia e da Economia”, diz o presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Marcos Aurélio Madureira.

Além disso, tem havido pressão de governadores e conselhos de consumidores para que não haja incidência de multa sobre contas em atraso e desligamentos de luz no caso de inadimplentes, durante o período de quarentena. “As empresas têm se dedicado, nos últimos dias, à reorganização de suas atividades para manter a qualidade na prestação dos serviços”, afirma Madureira. “Mas não podemos deixar de pensar também no que é importante, mais adiante, para o equilíbrio econômico- financeiro dos contratos.”

Atingidas por uma queda de 75% na movimentação de passageiros domésticos e de 95% nos voos internacionais, as operadoras de aeroportos conseguiram um alívio momentâneo. O governo adiou, para dezembro, o pagamento da parcela anual de outorga dos contratos – que vencem entre maio e julho. As concessionárias devem aproveitar o prazo maior para formular pedidos de reequilíbrio à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

No aeroporto de Brasília, administrado pela Inframérica, já se planeja fechar temporariamente o píer norte – que corresponde a quase metade da capacidade do terminal de passageiros – como adaptação à conjuntura.

Com menos passageiros, não só a receita com tarifas (cobradas de passageiros e empresas aéreas) diminui, mas também as receitas comerciais (como aluguel de espaço para lojas e lanchonetes). Tudo isso deve entrar na conta de um possível pedido de reequilíbrio econômico, segundo o diretor de assuntos corporativos da Inframérica, Rogério Coimbra.

De acordo com ele, o foco agora são o ajuste nas operações e o reforço nas ações de segurança sanitária, mas a crise atual configura um caso de “força maior” e exigirá eventual repactuação. “Já existe um enquadramento contratual para proceder esse reequilíbrio, mas não é algo trivial, que você pede hoje e sai na semana que vem”, afirma o executivo.

Um dos advogados mais conceituados no setor e ex-diretor da unidade de PPPs do antigo Ministério do Planejamento, Maurício Portugal Ribeiro distribuiu mensagem a clientes, no fim da semana passada, ressaltando a importância de que as concessionárias “documentem o mais detalhadamente possível” mudanças em suas atividades operacionais por causa da pandemia, aumentos de custos e reduções de receitas decorrentes das alterações feitas.

“Entendemos que, evidentemente, todo o esforço é necessário para salvar vidas. Ao lado disso, é preciso documentar esses esforços para preservar direitos e garantir a sustentabilidade econômico-financeira dos contratos”, acrescentou Ribeiro no e- mail.

Ele lembra que o estado de calamidade pública, por si só, não tem o efeito de suspender obrigações contratuais. Por isso, entende que pode ser viável buscar decisões administrativas ou judiciais para flexibilizar, provisoriamente, exigências de investimentos e aplicações de multas.

O advogado aponta uma série de incertezas para os futuros reequilíbrios. Nas PPPs de hospitais, diante da situação que se vive hoje, talvez nem tudo possa estar sendo devidamente documentado. Como fica? Depois da experiência massiva de trabalho, talvez mais empresas adotem esse expediente e haja menos gente usando transporte público. Uma concessionária de metrô poderá considerar isso na equação ao pleitear reequilíbrio contratual?

Para o presidente de um grupo com bilhões de reais investidos em infraestrutura de transportes e que pede para não ser citado, é importante que não haja “excesso de formalismo” na hora de avaliar os pedidos de repactuação e todos lembrem o momento de gravidade: “Vamos precisar de um pacto entre governo, Judiciário, Congresso, TCU e Ministério Público.”

24/03/2020 – Valor Econômico