Sérgio Avelleda - 150pxPor Sérgio Avelleda

As cidades brasileiras clamam por investimentos em mobilidade urbana. O repentino e acelerado crescimento das cidades brasileiras, iniciado na segunda metade do século 20, criou, em geral, cidades extensas, com pouca densidade e demandas crescentes de viagens que se tornam cada vez mais extensas.

Esse diagnóstico é sabido e ressabido. Basta olhar todas as manhãs para as periferias das cidades brasileiras para encontrar, desde as primeiras horas do dia, longas filas de pessoas esperando por um ônibus, de onde o cidadão se integrará com um ou mais de um modal, para depois de horas chegar ao local de seu trabalho.

Muitas cidades brasileiras já deveriam estar dotadas de transporte sobre trilhos, como soluções capazes de absorver a demanda existente, assim como a futura, mas, principalmente, como poderosas ferramentas de indução de outro desenvolvimento urbano: focado na criação de outras centralidades econômicas, na promoção do adensamento de áreas existentes e na indução ao desenvolvimento de uso misto.

Também já se sabe que a implementação de estruturas de transporte de massa não poluentes é o atalho mais curto para a promoção de externalidades positivas de alcance incomparável: redução da emissão de poluentes decorrentes da queima de combustível fóssil com impacto direto na qualidade de vida da população e nos custos do sistema de saúde, redução dos tempos de engarrafamento com ganhos econômicos cavalares de produtividade, diminuição drástica dos acidentes de trânsito e correspondente economia em diversos setores, entre outros. Esses dados são de domínio público. Faz anos que o Metrô de São Paulo desenvolveu metodologia para tornar tangíveis as informações das externalidades positivas, derrubando o conceito de que investir e operar sistemas de trilhos de alta capacidade é caro.

Apesar de conhecermos os problemas, de dominarmos tecnicamente as soluções, andamos em passos de cágado na implementação de estruturas capazes de atender à demanda e, mais, modificar o uso do solo nas cidades, levando adensamento e multiuso para regiões exclusivamente residenciais. As cidades que possuem redes de transporte de massa de trilhos têm muitos quilômetros a menos do que deveriam ter, e aquelas que ainda não têm, de porte grande, não conseguem tirar do papel os seus projetos.

A falta de recursos não é argumento sério. Na verdade, há falta de prioridade. O Brasil se autointitula uma federação. Ou seja, uma reunião de unidades autônomas, com amplas competências para legislar e se autossustentar. Contudo, a realidade é bem distinta.

Nos meus tempos de professor de direito, costumava brincar com meus alunos, desafiando-os a apontar-me uma lei estadual e sua ementa (o “título” da lei). À exceção das leis que tratam das custas judiciárias, em geral, os estudantes não conheciam nenhuma. E isso porque os Estados da federação não têm, em realidade, nenhuma competência legislativa relevante. Salvo poucas exceções, os estados e municípios também não geram receita tributária suficiente para o desempenho das suas funções.

Existe uma dependência da União. E nisso reside o vazio que limita o desenvolvimento do transporte de massa sobre trilhos. Se é verdade que o investimento tem um payback extremamente eficiente, como demonstrado em parágrafo anterior, não é menos verdade que os desembolsos para investimento e operação são elevados, incompatíveis com a realidade orçamentária das unidades federativas, por isso a participação da União. Mas não apenas com orçamento. O Brasil precisa de um plano estratégico de mobilidade urbana, a ser conduzido e liderado por quem tem poder e capacidade de arregimentar recursos: a União Federal.

Sei que o momento é de pessimismo. Vivemos uma quadra rara e, ao meu ver, gris. Essa é uma hora em que os combustíveis fósseis voltam a ser subsidiados, renuncia-se a tributos que poderiam e deveriam (eticamente) ser investidos em cidades mais limpas para aplacar a fúria de um setor da economia que sofre não pelo preço do combustível, mas pela imensa oferta de capacidade de carga, incompatível com a demanda. Essa oferta foi gerada por uma política de incentivo à aquisição de caminhões que, ao fim e ao cabo, apenas beneficiou um setor da economia.

Colhem-se os frutos de equívocos. E o pior, equívocos para corrigir os equívocos do passado.

A esperança, entrementes, é um dever do homem. Apesar de todo nebuloso horizonte, é preciso olhar o futuro e lutar para que lá se consiga fazer melhor do que foi feito até aqui.

A União deveria assegurar um investimento permanente, para os próximos 20 anos, em mobilidade urbana. Esse é um debate que deve ser levado para os candidatos a presidente. Um plano que, antes de mais nada, assegure um fluxo protegido de contingenciamentos para investimentos em mobilidade urbana.

O passo seguinte é a definição, com a participação dos melhores quadros entre urbanistas, sociólogos e engenheiros, das prioridades para alocação desses recursos.

Também deveria a União exigir que as cidades elegíveis para os investimentos façam a sua parte: constituam as autoridades metropolitanas de transporte, desenvolvam seus planos estratégicos, assegurem um núcleo técnico de alto nível vinculado à concepção e execução dos projetos e apliquem regras de governança claras para a relação com os entes privados, construtores e concessionários. As cidades também precisam se comprometer com revisões do Plano Diretor que assegurem o adensamento e o uso múltiplo do solo nas áreas que serão influenciadas pelos novos sistemas sobre trilhos.

A execução do plano deveria obedecer a regime licitatório próprio, inspirado nas regras de licitação dos organismos internacionais multilaterais. Os órgãos de controle precisam participar para compreender os ganhos econômicos de larga escala gerados pela implantação de sistemas de trilhos de alta capacidade e quanto uma paralisação de licitação ou obra, por questões burocráticas, pode resultar em prejuízos para toda a coletividade.

É preciso fomentar essa discussão com a sociedade, mostrar que a falta de transporte de boa qualidade não é fruto do destino, mas de uma contínua falta de política e estratégia, que a economia das cidades não resistirá com o atual quadro de imobilidade urbana. É preciso lutar para ter, no próximo período de governo, um comprometimento verdadeiro da União com os temas da mobilidade urbana. Não é o desejável. O bom seria que estados e municípios pudessem ter recursos e competências para elaborar seus planos, definir regras de licitação e controle, criar instrumentos normativos que possibilitassem a captura da valorização imobiliária decorrente da implantação de linhas de alta capacidade etc. Contudo, todas essas competências são da União.

Por isso que, ao meu ver, enquanto a União Federal não se comprometer com o transporte urbano de alta capacidade com a mesma intensidade com que se dedica aos temas da Saúde e da Educação (e não me refiro menos a recursos e muito mais à liderança, a apoio técnico, à supervisão e definição de prioridades).

Nossa tarefa é debater com a sociedade e os candidatos a Presidente da República, sensibilizando todos dos dramas que estarão reservados à qualidade de vida e à economia das nossas cidades na hipótese do investimento em sistemas urbanos de transportes de alta capacidade continuar sendo sonegado ou adiado.

Sérgio Avelleda, atual chefe de gabinete do prefeito Bruno Covas da Cidade de São Paulo, ex-secretário municipal de Mobilidade e Transportes (abril 2018).

Artigo publicado no livro “Mobilidade Urbana sobre Trilhos na Ótica dos Grandes Formadores de Opinião”, planejado e publicado pela ANPTrilhos – Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos.

 

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