Manuel Ribeiro_MR02 150pxpor Manuel Ribeiro

Mobilidade urbana para a maioria da população significa simplesmente o direito de ir e vir de acordo com a respectiva vontade e o desejo. Mais do que uma vontade e um desejo, a mobilidade decorre da obrigação diária das pessoas de se locomoverem da sua moradia para o trabalho, escola e outros compromissos e atividades. Assim, em termos urbanos, a mobilidade é um meio imprescindível para o exercício cotidiano das atividades econômicas e sociais dos habitantes das cidades, dos aglomerados urbanos e das regiões metropolitanas. Sem esse meio conector, é impossível pensar cidades e metrópoles. A mobilidade pelas características físicas, econômicas e sociais de cada cidade tem diferentes modais de deslocamento e transporte que devem complementar-se e integrar-se segundo um planejamento dinâmico municipal e metropolitano. Dita dessa forma, a mobilidade parece ser simples. É, entretanto, uma disciplina complexa que mesmo em países de IDH elevados passa por crises e insatisfações populares e facilmente torna-se um estopim para crises mais sérias de conteúdo institucional.

A falta de solidez nas suas instituições, com reflexos sociais e econômicos, leva o Brasil a ter sérias dificuldades no enfrentamento eficiente da mobilidade e do ordenamento urbano. Quando alguém no exterior quer referir-se a um processo de desorganização ou de caos urbano, o termo é brazilianization, pela nossa incapacidade de gerir as grandes metrópoles. Em virtude do número de variáveis que podem ser abordadas e a exiguidade de espaço para desenvolvimento do tema, preferiu-se centrar nas dificuldades enfrentadas pelo poder público no planejamento e na implantação de uma mobilidade razoável nas regiões metropolitanas, indicando genericamente possíveis caminhos para a busca de soluções eficientes. Cabe ressalvar que não há como enfrentar um problema dessa ordem sem a quebra de paradigmas.

1. Planejamento: É fundamental a existência em cada estado de uma Agência ou Entidade Metropolitana que efetivamente exerça com autoridade a função deliberativa no planejamento metropolitano em áreas de interesse comum dos municípios e sobretudo de mobilidade. O nome metrô não é mero acaso. As linhas troncais das metrópoles – idealmente projetadas para abrigar transporte sobre trilhos de alta capacidade – devem ser definidas com base em um Plano Hierárquico de Vias Metropolitanas e quando dimensionadas devem o ser com o espaço necessário para a solução final de capacidade do tronco. O sucesso no andamento das obras do Metrô de Salvador, um indiscutível case sob esse aspecto, deveu-se sobretudo à quase inexistência de desapropriação que, por exigir pagamento prévio com recursos fiscais e medidas judiciais, acaba sempre por paralisar, interromper ou mesmo inviabilizar uma obra linear. Além disso, o Plano Hierárquico de Vias Metropolitanas permite a concepção eficiente das linhas auxiliares alimentadoras das linhas troncais de transporte. Mobilidade pressupõe uma multimodalidade adequada e todas as linhas e modais são importantes, o que irá variar é a capacidade do modal, bem como o seu desempenho em relação à hierarquia de vias. O planejamento deve ser cauteloso quanto à ocupação e ao uso do solo, ao meio ambiente, ao modal adequado e, sobretudo, rigoroso com a regulamentação (desincentivo) do transporte individual por automóvel. Esse rigor leva Cingapura aos mais altos índices mundiais de satisfação com o transporte urbano. É preciso prever faixas exclusivas para modais coletivos eficientes à manutenção da hierarquia da via e seu papel no processo de integração, rodízios de veículos – exceto para transporte coletivo e serviços públicos – e a implantação de chips visando ao controle e à cobrança de pedágio urbano em áreas consideradas pelo Planejamento restritas ao transporte individual (zonas de alta concentração de atividades). Essas medidas devem ser complementadas pelo poder público com a implantação de semáforos inteligentes – prioridade para transporte coletivo – e de treinamento de agentes para operação de trânsito (não confundir com o ato isolado de multar). Não há eficácia na mobilidade, mediante transporte urbano, sem fluidez no trânsito. Mesmo os usuários do metrô ou do trem não estão imunes à falta de fluidez no tráfego; apesar da rapidez e independência de um transporte de alta capacidade sobre trilhos, esses usuários podem ficar prejudicados por não chegarem tempestivamente ao local da integração.

Por fim, cabe observar que as Agências ou Entidades Metropolitanas devem começar a realizar, utilizando dados das concessionárias, pesquisas para introduzir, ao lado de outros instrumentos já conhecidos, princípios de Big Data e de IoT (Internet das Coisas) como poderosas ferramentas de planejamento e acompanhamento das atividades ligadas à mobilidade, ao trânsito, ao meio ambiente (emissões de gases) e ao transporte urbano, visando principalmente à integração de modais e informações em tempo real, além do deadline de renovação e da atualidade das frotas.

2. Investimentos: A América Latina, queira-se ou não, é uma periferia do primeiro mundo com limitações enormes nas áreas social, política e econômica decorrentes principalmente da fragilidade institucional e da globalização econômica. No Brasil, destaca-se como limitação o aspecto fiscal, crise crônica, que na prática veda uma política contínua de investimentos em infraestrutura compatível com o planejamento plurianual e com a realidade do país.

Em média, um município, capital, fica com 18% do que se arrecada nesse município e tem a responsabilidade financeira de custear 70% das atividades, já a União fica com 68% da arrecadação e permanece com a responsabilidade financeira de apenas 10% das atividades. Isso é apenas uma amostragem empírica do que ocorre financeiramente nas nossas capitais e, por extensão, nas regiões metropolitanas. A capacidade de investimento dos municípios e regiões metropolitanas em infraestrutura de transporte coletivo urbano sobre trilhos, exceto talvez São Paulo, é inexistente. O Administrador Público, pressionado, às vezes investe de forma equivocada em modais inadequados para corredores troncais pela maior facilidade de financiamento e visando a um menor custo de investimento inicial. Quando começam as respectivas operações, contudo, o sistema já se mostra ineficiente ou até ultrapassado. É preciso que se entenda que o grande ativo desses municípios ou dessas regiões metropolitanas (RMs) é a receita futura emergente da concessão que, por interessar ao setor privado, poderá viabilizar o empreendimento com a solução correta e com um investimento público inicial reduzido. Para viabilização, mediante concessão ou PPP, o Projeto deve ser concebido com funcionalidade, atualidade e modernidade, prevendo baixo custo de desapropriação (previsão de utilização de vias e áreas públicas), investimento reduzido (adoção de soluções de engenharia tecnicamente simples, evitando-se grandes estruturas ou trechos subterrâneos) e a integração total com os modais existentes. Cabe observar que mobilidade urbana – da calçada ao corredor troncal – é una e devidamente integrada sob os aspectos de engenharia, operacional e tarifário.

Ainda assim, não é fácil viabilizar projetos de infraestrutura de transporte urbano e os municípios dependerão de aporte fiscal da União e/ou do estado. Como a situação fiscal da União e dos estados também é difícil ou já está em crise, se o recurso a ser aportado não for contratualmente bem definido, o investimento pode sofrer solução de continuidade ou o privado não se interessará pelo projeto por não conseguir fechar com financiadores um financiamento do tipo Project Finance. Cuidado especial deve ser dedicado à desapropriação. Numa obra linear, um “soluço” – jurídico ou financeiro – na desapropriação pode significar uma interrupção desastrosa no investimento; o Project Finance fica comprometido, pois uma lacuna de apenas cem metros inviabiliza a linha ou a via e, com isso, deixa de existir o principal ativo para pagamento do empréstimo: os recursos provenientes dos bilhetes (recursos emergentes da concessão). Nessa hipótese, o desembolso dos financiadores para a obra, via de regra, fica suspenso.

Sugere-se, por fim, que sejam criados pelo Governo Federal incentivos fiscais para investimentos em infraestrutura de transportes urbanos e metropolitanos para aplicação em debêntures e ações de concessionárias inclusive com opção e desconto no imposto de renda. Observa-se que o Governo Federal não deve, nas concessões de financiamentos para o transporte urbano, tomar partido de um modal determinado para atender a diretrizes de política industrial, deixando de lado a eficiência técnica e os aspectos sociais que devem prevalecer na mobilidade metropolitana. O trabalhador é quem mais pagará por esse equívoco.

3. Integração, Bilhete Único e Subsídios: O subsídio ao transporte coletivo é praticamente global; todos os países o praticam independentemente do nível da renda per capita ou do IDH. O transporte urbano ou metropolitano é meio; o fim são principalmente as atividades sociais, econômicas, laborais, educacionais e de saúde. O transporte urbano, mais do que uma necessidade do indivíduo, é uma necessidade vital do país e da sociedade. Adicionalmente, o trabalhador já está pagando o transporte urbano com as horas in itinere indispensáveis a sua jornada laboral e que por elas nada recebe (horas dedicadas ao trabalho, sem produção e sem remuneração). É imperativo, portanto, o subsídio que possibilite a modicidade tarifária adequada ao padrão de renda do trabalhador brasileiro. O custo do transporte urbano tal como ocorre na Previdência deve ser universal, compulsório e bancado por toda a sociedade com subsídios efetivos e transparentes. O que não pode é a utilização no transporte urbano do subsídio cruzado, em que o poder público gera benefícios para o usuário do transporte coletivo pagar. Em muitas cidades a gratuidade do idoso, do estudante, incluído o de escola privada, da polícia e do deficiente é bancada pelo subempregado, desempregado e trabalhador do mais baixo estrato de renda que paga o bilhete.

Com referência ao subsídio, tem-se que definir alguns princípios: (i) duas tarifas: a tarifa de público paga efetivamente pelo usuário não isento e a tarifa do serviço, valor recebido pelo concessionário em virtude da efetiva prestação do serviço; (ii) universalidade da tarifa do serviço; (iii) integração tarifária: um bilhete de ida e outro de volta com utilização livre nos diversos modais com limite de tempo e sem limite de linhas; (iv) introdução do bilhete único metropolitano com mesma tarifa de público independentemente da distância; (v) integração de todos os modais de transporte metropolitano considerados essenciais pelo planejamento, inclusive aquaviários.

Além das dificuldades em razão das obrigações contratuais existentes, a implantação de subsídio dependerá de recursos fiscais num quadro cronicamente adverso. Como sugestão inicial propõe-se, em cada RM com mais de dois milhões de habitantes, a criação de um Fundo Social de Mobilidade Metropolitana pela internalização de recursos fiscais do estado e dos municípios integrantes da respectiva RM e mais os provenientes de: (a) receitas oriundas do desincentivo ao uso do transporte individual ou seletivo (ônibus e micro-ônibus padrão turismo) representadas por: (a1) uma contribuição constitucional (semelhante à de Iluminação Pública) sobre gasolina, etanol e gás natural a ser instituído por emenda constitucional; (a2) pedágio eletrônico urbano; (a3) adicional sobre o IPVA; (b) contribuição ou taxa para o transporte do trabalhador (semelhante à existente na França) a ser paga pelo Sistema S, que a negociará com o setor produtivo; (c) eventual valor de outorga de concessão ou PPP e os oriundos de projetos associados e receitas acessórias; (d) parte da receita de contribuição de melhoria a ser calculada de forma proporcional à valorização imobiliária resultante dos investimentos públicos; (e) parte da receita proveniente do solo criado ou de instrumentos que o representem como, por exemplo, CEPAC; e (f) parte de receita de royalties de petróleo (pré-sal) e multas de trânsito.

Nas Regiões Metropolitanas, com a ausência de subsídio tendem a ocorrer, entre outras consequências, a fuga de usuário do sistema de transporte coletivo, a densificação das cidades e bairros mais próximos com ocupações espontâneas (principalmente em encostas e fundos de vale), a verticalização habitacional de risco e as dificuldades do trabalhador que mora nas localidades mais distantes das RMs de se inserir no mercado de trabalho formal em virtude do elevado custo de deslocamento. Acrescentem-se ainda crises sociais periódicas na data-base de reajuste de tarifas com a eventual paralisação da mobilidade nas cidades e a consequente redução das atividades econômicas.

A fiscalização do subsídio hoje está facilitada em virtude do CPF e da articulação de bancos de dados como o do Bolsa-Família, SUS, INSS etc. Adicionalmente, o setor de transporte metropolitano poderá evoluir para um controle mais eficiente de todo o sistema integrado mediante o desenvolvimento da tecnologia do blockchain para a área de transporte urbano que, integrado a normas de conformidade (compliance), garantirá a rigorosa e correta aplicação dos recursos referentes a subsídio.

4. Aspectos Institucionais:

4.1 Regiões Metropolitanas: Não há modelo institucional para a implantação das Regiões Metropolitanas. Todas as leis estaduais existentes, quando começam a gerar efeitos, têm sua constitucionalidade questionada. As decisões do STF têm declarado constitucionalidade parcial, mas que desfiguram a lei e tornam difícil, senão impossível, sua aplicação. A última Lei Estadual Complementar aprovada foi a do estado da Bahia, que criou a Entidade Metropolitana da Região Metropolitana do Salvador (Lei Complementar n.º 41 de 13/06/2014), que teve de imediato sua constitucionalidade contestada pelo DEM mediante ADI n.º 5155, de 2014, e está conclusa a um dos ministros do STF, sem qualquer evolução. Mesmo com um importante estado – geograficamente uma Região Metropolitana – sob intervenção federal, o tema não logrou obter a importância devida na nossa Corte Constitucional. É vital o balizamento do STF, pois a falta de uma gestão metropolitana eficiente em muito colabora para o caos urbano vivido pelo País;

4.2 Tributos e Política Industrial: A crise fiscal pela qual o País cronicamente se deixa abater tem levado o Poder Público ao absurdo de insensibilidade social quando taxa com imposto indireto e com alíquotas elevadas a energia elétrica fornecida ao transporte sobre trilhos e ao combustível do transporte sobre pneus. De novo o mais baixo estrato de renda contribui para financiar o estado, enquanto as montadoras são desoneradas. É necessário que se defina um teto nacional para os tributos que incidam sobre os principais insumos (Curva ABC) para a prestação de serviços de transportes coletivos urbanos e metropolitanos e que se direcione a Política Industrial no setor de transporte coletivo para a renovação de frota quase de maneira compulsória como se fez com aparelhos elétricos de linha branca.

Vamos caminhar na mobilidade metropolitana e buscar retirá-la do cenário de brazilianization. Será uma tarefa difícil enquanto o Brasil for o paraíso do transporte individual e praticar uma política industrial míope e equivocada para o setor.

Manuel Ribeiro Filho, 68, é Engenheiro Civil com extensão em Desenvolvimento Econômico e especialização em Engenharia Econômica e atualmente trabalha como consultor independente nas áreas de Engenharia Civil, Desenvolvimento Urbano e Estruturação de Projetos.

Artigo publicado no livro “Mobilidade Urbana sobre Trilhos na Ótica dos Grandes Formadores de Opinião”, planejado e publicado pela ANPTrilhos – Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos.

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